Dois
anos atrás, ganhei um livro de Telma, mas não puder dedicar-me à sua leitura
então. Com o passar do tempo, ele se perdeu no meio de minhas bagunças e o
reencontrei há cerca de três meses quando fui arrumar minha biblioteca, após a
reforma em nosso apartamento.
Selected Writings of Li Shenzhi é uma publicação da Kettering Foundation Press, editado por Ilse
Tebbetts e Libby Kingseed em 2010. Na semana passada, arrumando minhas coisas para
viagem a Maringá e Londrina, em função das festividades natalinas, decidi colocá-lo
na bagagem. Comecei a leitura em Maringá, continuei em Londrina e vim
concluí-la hoje em Curitiba.
Li
Shenzhi, chinês que viveu entre 1923 e 2003, foi um acadêmico e membro do
governo chinês que dedicou muito esforço na defesa da reforma política e
democracia na China. Segundo os organizadores do livro, ele foi um dos
principais estrategistas e conselheiros de relações exteriores na China, tendo
exercido papel importante na promoção de atitudes moderadas da China e da
política de Portas Abertas para o Ocidente. Ao tempo de Mao, foi conselheiro de
relações exteriores para o Premier Zhou Enlai no começo da década de 50. Mais
tarde, acabou sendo posto de lado, acusado de direitista, no período da
Revolução Cultural dos anos 60. No final dos anos 70, foi procurado por Deng
Xiaoping em busca de conselho sobre política de relações externas, em especial
com os Estados Unidos. Acompanhou a visita de Deng aos Estados Unidos em 1979 e
a do Premier Zhao Ziyang em 1984.
O
livro contém doze textos anteriormente publicados em chinês entre 1993 e 2002,
além de uma entrevista originalmente publicada em Contemporary Chinese Thought (v. 33, n. 2, 2001). Raramente, tive a
oportunidade de ler sobre a história desse país tão distante. Em muitos dos
textos, Li Shenzhi comenta sobre sua visão de uma possível democracia na China,
a partir de uma tradição liberal. Ao fazer isso, em seus textos nos ensina
sobre a história chinesa de mais de 2.300 anos passados. Para ele, a principal
dificuldade dessa evolução residia no Autoritarianismo (authoritarianism), uma
tradição cultural que vem desde o período de Qin Xiao Gong que era o soberano do
Estado de Qin de 361 a 338 AC, que unificou o país durante o período da Guerra
dos Estados. Para Lin Shenzhi, o Autoritarianismo sustentou-se em duas escolas
de pensamento: Confucionismo e Legalismo.
Confúcio
enfatizava uma filosofia humanista que ressaltava a importância da ética e
educação para melhorar a sociedade humana, ao passo que o Legalismo, que surgiu
do Confucionismo, defendia que o ser humano é essencialmente ganancioso e egoísta,
devendo ser controlado por leis e o poder do Estado. Dessa forma, o
autoritarianismo tem sobrevivido à longa história chinesa, devido à prevalência
de três diretrizes que datam do primeiro século: o governante guia seus
ministros; o pai guia seus filhos; e o marido guia sua esposa. Mais de 2.000
anos transformaram essas ideias em uma ideologia que, segundo Shenzhi, penetrou
profundamente no modo de vida do povo chinês.
Pelos
seus textos, percebe-se que Li Shenzhi devotava certa admiração pelo sistema de
vida do povo dos Estados Unidos. Ele foi um dos defensores da virada na
política externa chinesa de afastamento da União Soviética e aproximação com os
Estados Unidos. Foi, também, o organizador do Instituto de Estudos Americanos
na Academia Chinesa de Ciências Sociais e fundador da Associação Chinesa de
Estudos Americanos em 1988.
Entre
as muitas coisas interessantes que descobri sobre a China, uma me deixou muito
satisfeito. Lembro-me que nos anos 70, costumava-se falar sobre os países do
terceiro mundo e do primeiro mundo. Nunca soube sobre a origem dessa
classificação, mas a distinção para mim era muito clara. O primeiro mundo era
representado pelos Estados Unidos, imperialista, e outros países europeus muito
ricos; terceiro mundo eram os países da África, Ásia e América Latina. No texto
em que comenta sobre a diplomacia da República Popular da China, Li Shenzhi
informa que Mao foi quem criou estas categorias, que depois foi popularizada
pela publicação de um artigo em todos os jornais da nação no dia primeiro de novembro
de 1978. Nas palavras de Li Shenzhi, o
campo capitalista com os Estados Unidos à frente como o primeiro mundo, o campo
socialista liderado pela União Soviética como o segundo mundo, e todos os
outros que não pertenciam a nenhum dos campos como o terceiro mundo (p.
146).
Mas,
Shenzhi, conta que, de forma inesperada, em uma reunião com o Presidente Kaunda
da Zâmbia, em 22 de fevereiro de 1974, Mao apresentou uma ideia diferente para
as categorias. Conforme Shenzhi, nas palavras de Mao:
_ Na minha opinião,
os Estados Unidos e a União Soviética pertencem ao primeiro mundo. Aqueles no
meio incluem Europa, Japão, Austrália, Canadá e outros, que não têm tantas
bombas nucleares e não são tão ricos, mas ainda assim mais ricos que o terceiro
mundo. O terceiro mundo tem uma população muito grande. Toda a Ásia, exceto o
Japão, pertence ao terceiro mundo. Toda a África e toda a América Latina
pertencem ao terceiro mundo (p. 146).
É
uma sensação tão agradável encontrar a origem de ideias que estavam em meu
discurso no passado, mas que não sabia de onde tinham vindo!
Os
textos de Li Shenzhi trouxeram muita informação nova para mim. Outra que me
deixou intrigado foi o movimento de revolta de dezoito camponeses que
imprimiram suas mãos tingidas de sangue para registrar um acordo que fizeram
sobre a divisão de uma parte de terra com o objetivo de iniciar pequenas fazendas
individuais. Segundo Shenzhi, foi este acontecimento que levou à reforma e à
abertura do regime comunista chinês. Muito consistente com suas ideias, o
movimento obteve grandes resultados porque deu ao povo chinês alguma liberdade.
Não pude deixar de pensar em como isto poderia ser explicado por uma teoria do
empreendedorismo!
Mas,
Li Shenzhi morreu em 2003. Não teve tempo de testemunhar a grande crise
econômica ocorrida após os eventos de falência de grandes empresas financeiras
em 2008, que estavam sediadas nos Estados Unidos que tanto admirava. O que
teria pensado? Com certeza seria mais um estudioso a nos ajudar a entender o
comportamento capitalista ganancioso e egoísta. Será que a escola de pensamento
Legalista, derivada do Confucionismo, poderia reforçar a luta por uma regulação
mundial dessas atividades?
Fiquei
refletindo sobre essas questões, após rever Trabalho
Interno, documentário escrito e dirigido por Charles Ferguson. Lançado em
2010, o filme relata a história da crise econômica de 2008 que custou ao mundo
mais de US$ 20 trilhões de dólares, com muito sofrimento causado por perdas de
empregos, casas e recursos de milhões de pessoas.
A
partir de entrevistas com profissionais da área financeira, políticos,
professores universitários, e baseado em muita pesquisa, Charles Ferguson
apresentou-nos um retrato realista e, ao mesmo tempo, revoltante da ganância e
cinismo presente nos representantes de Wall Street, ou melhor, como um dos seus
entrevistados disse, os representantes
do governo de Wall Street, já que desde antes de Bill Clinton, os
responsáveis pela área econômico-financeira do governo dos Estados Unidos têm saído e se
revezado na ocupação de cargos a partir de sua atuação em Wall Street.
Juntando
tudo isso, continuo nessa minha jornada particular em busca do entendimento da
evolução da humanidade. Sem perder a esperança, mantenho o desejo de que as
frases complementares de Confúcio e Jesus, que aprendi com Li Shenzhi, possam ser
ouvidas mais fortemente e ajudar a construir um mundo sustentável:
Não faça a outros o
que não deseja que seja feito a você (Confúcio).
Tudo o que quereis
que lhe façam, faça-o também aos outros (Cristo).
Talvez
fosse essa a ideia de Shenzhi ao escrever em 1995: Nós chegamos a um ponto em que devemos assumir responsabilidade em
formular um padrão de valor global efetivo. Esta é a era que chama por
pensadores, estadistas, líderes religiosos e educadores (p. 126).
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