Quando fiz mestrado em administração na Faculdade
de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, entre 1982 e 1983,
fiz duas disciplinas de Didática do Ensino Superior, com o Professor Gilberto.
Naquela época fiquei positivamente impressionado com as ideias de Carl Rogers
sobre educação, especialmente as presentes em seu livro Liberdade para Aprender que propunham uma aprendizagem centrada no
aluno. Ao longo desses trinta e cinco anos de carreira no ensino universitário
o meu descontentamento com processos de ensino/aprendizagem centrados no
professor foi se acentuando. Tenho feito leituras recentes de outras obras de Rogers
tentando me aproximar de uma prática rogeriana sempre que possível.
Com o passar dos anos, sentia-me cada vez mais
desconfortável em ter que dirigir a aprendizagem de alunos em idade adulta,
especialmente quando era responsável por conteúdos onde não é possível ter uma
resposta única para o agir administrativo. A prática da administração é apoiada
em um conjunto de técnicas, instrumentos e ferramentas, tais como, fluxo de caixa,
orçamento, programação linear, layout, plano de negócio, planejamento
estratégico, métodos de diagnóstico, entre outros. Mas, o que considero
essencial na administração é que esta é uma prática de (re)construção de uma
determinada ordem social que depende de uma competência complexa que se centra
na busca do consentimento, interesse e ação efetiva de outras pessoas, seja
dentro da própria organização ou fora dela. Essa re(construção) pode ocorrer em
diferentes níveis da sociedade: grupos de pessoas, partes da organização,
organização, grupos de organizações, setores econômicos, nações. Nesse sentido,
a maior parte do conhecimento administrativo útil não é universal, mas sim
contingencial, devendo sua prática se ajustar a diferentes momentos ou
situações organizacionais. Isso significa que, embora o domínio de ferramentas
e métodos seja importante para a prática da administração, seu uso não é o que
determina o alcance dos objetivos desejados coletivamente por todos os
envolvidos nessa (re)construção social.
Ora, o ensino de métodos, ferramentas e
instrumentos pode ser mais frutífero se é feito de forma diretiva por um
professor que domina seu uso e é capaz de treinar os estudantes na utilização
correta dessa parafernália administrativa. Mas, o cerne da administração não se
pode aprender por processos instrumentais, ao contrário, a construção de conhecimento
em administração passa por processos reflexivos e devem ser objeto de uma
aprendizagem, que no dizer de Carl Rogers, deve ser significativa. Mas o que é
isso?
Em Liberdade
para aprender, Rogers diferencia entre a aprendizagem instrumental e a
significativa. A primeira está relacionada com a memorização de um modo de
fazer e sua consequente reprodução de maneira certa. É dirigida pelo professor
que é visto e, quase sempre, se comporta como um depósito de saberes que
comunica conhecimento. Por outro lado, a aprendizagem experiencial ou
significativa tenta desenvolver o conhecimento sobre modos de fazer, na busca
da construção de um conhecimento individual sobre o como agir. Esta
aprendizagem é autodirigida, cabendo ao professor um papel de facilitador que
orienta e ajuda a criar condições propícias para que ocorra.
A proposta rogeriana baseia-se no pressuposto de
que a construção do conhecimento é automotivada e centrada em alguns
princípios. Na página 5 de Liberdade para
aprender aprendi com Rogers que a aprendizagem significativa ou
experiencial:
·
Tem a qualidade de um envolvimento pessoal: a
pessoa, como um todo, tanto sob o aspecto sensível quanto sob o aspecto
cognitivo, inclui-se no fato da aprendizagem;
·
É auto-iniciada: mesmo quando o primeiro impulso
ou o estímulo vem de fora, o senso da descoberta, do alcançar, do captar e do
compreender vem de dentro;
·
É penetrante: suscita modificação no
comportamento, nas atitudes, talvez mesmo na personalidade;
·
É avaliada pelo educando: este sabe se está indo
ao encontro das suas necessidades, em direção ao que quer saber... O lócus da
avaliação, pode-se dizer, reside afinal no educando; e
·
Significar é a sua essência: quando se verifica
a aprendizagem, o elemento de significação desenvolve-se, para o educando,
dentro da sua experiência como um todo.
Mais ao final do livro, Carl Rogers elabora sobre o
propósito da aprendizagem significativa. Para ele, esta deve ajudar o estudante
a tornar-se uma pessoa em pleno funcionamento, ou seja:
·
Uma pessoa que funcione livremente em toda a
plenitude das suas potencialidades organísmicas;
·
Uma pessoa que será realista,
auto-engrandecedora, socializada e apropriada em seu comportamento;
·
Uma pessoa criativa, cujas específicas formas de
comportamento não são facilmente previsíveis; e
·
Uma pessoa sempre em mudança, sempre em
desenvolvimento, sempre a descobrir-se a si mesmo e ao que há de novo em si, a
cada instante sucessivo do tempo.
Mas, é possível ser rogeriano dentro das restrições
que nos impõe nosso sistema de ensino universitário? Não é possível, mas
podemos tentar nos aproximar dessa ideia fazendo alguns ajustes em nossas
práticas enquanto professores. É o que venho tentando, tanto na graduação
quanto na pós-graduação. Nesta última, é uma tarefa menos árdua, pois um
mestrando ou doutorando tem, ou pelo menos deve ter, um alto grau de autonomia
na escolha de que conhecimento deseja construir. Na graduação, as amarras são mais
fortes. Espera-se um comportamento mais diretivo dos docentes. Uma ênfase muito
forte em conteúdo a ser transmitido é desejada. Tenho resistido na medida do
possível a essas restrições sistêmicas. Em poucas palavras, eis o que consigo
fazer.
Primeiramente, reconheço as restrições que devo
observar: a) temos um conteúdo que deve ser analisado (Mas podemos escolher o
que enfatizar, o que aprofundar, o que não aprofundar, até mesmo ir além!); b)
temos um cronograma definido e obrigação de estar presente nos encontros
previstos (O professor em 100%, os estudantes em 75%); c) temos que fazer
avaliação formal (podemos usar diferentes formas, por exemplo auto-avaliação (estudante)
e hetero-avaliação (professor); podemos escolher como fazera avaliação); d) a
avaliação deve ser feita em dois momentos (na metade e ao final dos encontros
semanais).
Em segundo lugar, tento misturar um mínimo de
direção com um máximo de escolha do que aprender por parte dos estudantes. Quando
começo uma disciplina, estabeleço um prazo de duas semanas, para o estudante refletir
sobre suas metas de aprendizagem e preparar seu projeto de aprendizagem onde
estabelecerá objetivos e duas produções significativas. Estas produções podem
ser na forma de: a) ensaio sobre um dos temas de estudo da disciplina; b) relato
de um estudo de caso de uma organização; c) organização de um evento sobre tema
da disciplina (implica na entrega de um relato escrito para documentação); d) relato
de uma pesquisa empírica sobre algum tema da disciplina; e) qualquer outro
projeto que o estudante julgue que possa ser significativo na construção de seu
conhecimento. As produções significativas podem ser individuais ou grupais. Eu,
por outro lado, estabeleço um programa de leituras sobre os conteúdos da
disciplina, cabendo a cada estudante a leitura de um dos textos e apresentação
para a turma. Os demais leem os textos que quiserem ler. Se o estudante quiser
pode procurar outro texto diferente daquele que lhe foi distribuído desde que
seja sobre algum tópico previsto na ementa da disciplina.
Por fim, assumimos alguns compromissos e um sistema
de avaliação misto. Os meus compromissos são: a) estar presente em todos os
encontros previstos (minha obrigação); b) sugerir e organizar atividades de
aprendizagem que possam ser significativas; c) prestar orientações sempre que
for necessário, desde que previamente agendado quando não for no horário dos
encontros; d) buscar fontes de informação documentais e pessoais que possam ser
acessadas pelos estudantes; e) tentar ser justo na hetero-avaliação; f) não
definir atividades ou tarefas a serem feitas extra-classe além da leitura e
preparação da apresentação de um texto; g) registrar presenças em dois momentos
(antes do intervalo e ao final do encontro). Os compromissos do estudante são:
a) estar presente em 75% dos encontros; b) realizar as produções significativas
que escolheu; c) apresentar de forma consistente o texto que lhe couber; d) aprender
o que julgar significativo; e) tentar ser justo na sua auto-avaliação.
A cada semestre insisto nesse formato. Algumas vezes
com bom resultado, outras vezes o resultado não é tão bom. Neste semestre não
estamos caminhando bem. Mas, quando em dúvida, procuro sempre pensar que o
estudante é o protagonista de sua aprendizagem. Eu sou um mero coadjuvante. Ele
ou ela precisa saber que, quando necessitar, estarei disposto a ajuda-lo(a) na
construção de seu conhecimento. Como protagonista é o melhor juiz de seu avanço
na construção do conhecimento. Dessa forma, o sistema de avaliação das
disciplinas envolve uma autoavaliação (60% da nota) e uma heteroavaliação das
produções feitas por mim (40%).
A autoavaliação é feita por meio de um instrumento que
é construído de forma coletiva pelos estudantes em uma dinâmica que realizo no
início de cada turma semestral. A partir de uma pergunta (o que é significativo
para avaliar sua aprendizagem?) são construídos dez itens que serão respondidos
individualmente pelos estudantes numa escala de 0 a 100. Na turma atual, os
itens que surgiram foram:
Sempre busquei conhecimento sobre os temas da disciplina
por iniciativa própria (Proatividade)
|
Fui sempre pontual nos encontros dessa disciplina (cheguei
no horário estabelecido)
|
Minha participação nas atividades em sala foi muito
intensa
|
Me organizei de forma adequada para a aprendizagem nesta
disciplina
|
Me esforcei muito para aprender sobre os temas dessa
disciplina
|
Fui sempre responsável no que diz respeito às atividades
previstas para esta disciplina
|
Sempre estive presente nos encontros da disciplina em que
deveria estar (assiduidade)
|
Meu interesse sobre esta disciplina sempre foi muito
elevado
|
Sempre tive um comportamento adequado a um ambiente de
aprendizagem durante as aulas
|
Sempre me comportei de forma ética na realização das
atividades da disciplina
|
Além desses dez itens, havia duas questões dissertativas
que indagavam: O que você mais gostaria de saber sobre o tema central desta
disciplina? Por que?; e 2. O que você sabe sobre o tema central desta
disciplina?
Depois que apliquei a primeira autoavaliação nesse
semestre, resolvi fazer um pequeno teste de confiabilidade das médias
atribuídas a um dos itens. Para isso utilizei a única medida objetiva que tenho
sobre o comportamento dos estudantes nesse semestre que é o número de faltas de
cada um. Fiz um teste de correlação entre a nota atribuída ao item de
assiduidade realizada pelo estudante e o número de faltas que teve na primeira metade
da disciplina. A correlação, considerando as respostas de 55 estudantes foi de
-0,73 com um nível de significância menor que 0,001! A correlação entre média
dos dez itens e número de faltas também foi negativa, mas menos forte e com um
nível de significância menor que 0,10.
O resultado foi muito significativo, em termos
estatísticos evidentemente. Mas, para mim significou um reforço significativo na
construção de meu conhecimento e crença na possibilidade de tentar se quase
rogeriano em minha prática docente. Fiz também uma pequena comparação entre as
respostas de mulheres (33) e homens (22). Para quase todos os itens da
avaliação, as médias não tiveram diferenças entre os gêneros. Apenas na questão
da participação é que houve uma diferença significativa sendo que as mulheres
se avaliaram como mais participativas do que os homens. Um rogeriano puro não
estaria preocupado com estas objetivações de aprendizagem, mas este pequeno
teste me deu um conforto e vontade de persistir nesse caminho.