Quando publiquei "O Estrategista na Pequena Empresa", na introdução relatei que meus irmãos e eu passamos boa parte da infância brincando no supermercado que nossos pais haviam criado na esquina da Paranaguá com Goiás em Londrina. Com o passar dos anos, a pequena empresa de meus pais deixou de ser um espaço de brincadeiras, tornando-se o local de nosso primeiro envolvimento com o trabalho.
Essa pequena empresa e as pessoas que nela trabalharam ou que foram seus clientes (fregueses no dizer de meus pais) povoam parte de minha memória com lembranças que, às vezes, ainda hoje, depois de muitos anos de seu fechamento, servem de exemplo para ilustrar um ou outro aspecto do empreendedorismo e da administração de pequenas empresas em minhas aulas.
Outro dia, quando estava acompanhando minha mãe nas compras em uma loja de uma grande rede de supermercados que se instalou em Londrina, encontramos o José Brunelli, irmão da Margarida, filho da Dona Letícia, que fora freguesa durante toda a existência do Supermercado Gimenez. O José, depois dos abraços e cumprimentos calorosos que marcam o reencontro de pessoas que se tornaram amigas, indo muito além da relação comercial, me disse:
_ Fernando, sabe que algo que nunca esqueço são os momentos em que minha mãe me chamava e dizia: "Zezinhooooo! Vai lá no Gimenez e me traz....".
E continuou:
_ Foram infinitas idas ao Gimenez...
Assim como o Zezinho, muitos outros filhas e filhos atenderam a esse chamado: "Vai no Gimenez e me traz uma caixa de sabão, uma lata de óleo, cinco pães e um litro de leite. Fala pro Seu Christovam ou pra Dona Kilda marcarem. Depois eu passo lá e pago."
Uma pequena empresa que existiu por algumas décadas no mesmo local, deixa de ser apenas um espaço de trocas comerciais e torna-se um lugar onde laços de amizade e companheirismo se formam e permanecem. Assim como os Brunelli, meus pais estabeleceram relações de amizade com os Fernandes, os Amaral, os Ferrari, os Gorini, aquela família de "turcos", como era mesmo o sobrenome? Além desses, a família do Prof. Samuel Fabri, do Dr. Moisés Godói, Seu Souza e Maria Luíza, Dona Catarina e seus filhos, Zanda Amaral e seu Arnaldo com os filhos, os Garcia Lopes, a família da Jane, Magali e Divina, os Gonçalves, e muitos outros que estão na minha memória e, certamente de minha mãe e meus irmãos.
Esse encontro com o Zezinho Brunelli me veio à mente quando estava lendo a edição especial da Entrepreneurship Theory and Practice, uma das revistas mais importantes do campo do Empreendedorismo que foi lançada em janeiro desse ano. O tema da edição especial é "O coração do empreendedorismo" e contém oito artigos que abordam os mais variados aspectos da relação das emoções com o empreendedorismo e a administração de pequenas empresas.
Essa leitura me fez lembrar de um livro publicado por Stafford Beer, uma das pessoas mais brilhantes que tive o privilégio de conhecer quando fiz meu doutoramento na Inglaterra. Em 1979, Stafford Beer publicou um livro cujo título era " O coração do empreendimento" (The heart of enterprise) cujo propósito foi complementar seu livro anterior "O cérebro da firma" (The brain of the firm) publicado em 1972. O professor Stafford Beer, nessas duas obras, defendia um modelo que tratava as organizações como sistemas viáveis e propunha princípios de administração. Mas, algo que aparentemente parecia embutir a frieza do conhecimento científico racional era carregado de emoções, pois para Stafford Beer "a administração que é profundamente baseada em quaisquer princípios científicos, e não tem 'coração', no sentido de consideração humana, não será bem sucedida".
Explicar a permanência de pequenas empresas durante décadas em um mercado que é cada vez mais competitivo e dominado por grandes redes não é uma tarefa acadêmica fácil. Há uma quantidade tão variada de coisas que podem se relacionar com o fracasso ou sucesso de uma pequena empresa, que até hoje, apesar dos esforços dos estudiosos, temos muitas certezas e, também, muitas dúvidas. Mas, nesses 30 anos que tenho dedicado a essa tarefa, carrego comigo uma certeza que não aprendi nos bancos escolares, mas sim no convívio com meus pais no tempo em que os ajudei no supermercado: tão importante quanto o sucesso financeiro e econômico, a administração de uma pequena empresa bem sucedida depende de laços afetivos entre os que nela trabalham e os que dela dependem para a aquisição de produtos ou serviços em sua vida.
Talvez, para explicar essa presença da pequena empresa em nossa sociedade, precisamos olhar além da academia e, por exemplo, refletir sobre os versos de Pablo Neruda: "Assim cada manhã de minha vida trago do sonho outro sonho".
Há na ação dos proprietários de pequenas empresas a representação de um sonho que é renovado a cada dia. Anos depois, é bom lembrar que os sonhos de Kilda e Christovam marcam as memórias de muitos Zezinhos, Joãozinhos e Mariazinhas.