Hoje fui ao cinema. Na sala de espera, enquanto aguardava a liberação de entrada, fui observar algumas fotografias de Marcel Gautherot, fotógrado de origem francesa, que em 1939 veio para o Brasil e acabou ficando por aqui. Esta foto reproduzida abaixo me chamou a atenção. Parece que o olhar do fotógrafo enquadrou aquilo que via em três retângulos sobrepostos. Na parte superior, o céu, um pouco ameaçador. Na inferior, as águas revoltas de um rio. No meio, pessoas em casas e barcos. Na exposição a foto tem o título de Cidade Flutuante. Ao voltar para casa, descubro que a fotografia é uma das que compuseram a exposição Marcel Gautherot – Norte, realizada em 2009 e 2010 pelo Instituto Moreira Sales. Ela, também, integra o livro de mesmo título lançado em paralelo com a exposição.
Fonte: http://mauriciostycer.ig.com.br/2009/11/25/a-floresta-pelas-lentes-de-gautherot/
Ao vê-la, veio de imediato à minha mente a ideia de
configuração, perspectiva de análise organizacional que aplico em meus estudos
recentes sobre empreendedorismo e gestão de pequenas empresas. Essa ideia, diz
respeito à busca da percepção de totalidades ou todos integrados que podem
variar no tempo e no espaço, mas que contém certa estabilidade que não é eterna.
É uma forma de superar, ou complementar, o olhar analítico que predomina na
construção do conhecimento em estudos organizacionais. Em outras palavras, é a
busca da síntese, um olhar holístico que enxerga as partes, mas não as
desvincula do todo que integram.
Para mim, é impossível que este registro feito por
Marcel Gautherot na Amazônia Brasileira em 1944 seja decomposto em partes, apesar
de meu olhar analítico ter sido hábil na visualização dos três retângulos de
tamanhos praticamente iguais. Se recortássemos essa fotografia em três, cada um
de seus terços não teria nenhum significado, o significado vem de sua
integração. O mesmo ocorre com minha busca das configurações organizacionais.
Não consigo mais atribuir significado as dimensões que compõem a vida
organizacional de forma isolada. Elas só fazem sentido quando articuladas em um
todo integrado, ou seja, em uma configuração. Configurações, em geral,
envolvem, estratégia, estrutura, liderança, ambiente, tecnologia, entre outros
aspectos das organizações.
Assim, não foi nenhuma surpresa que ao ler a
apresentação sobre o livro com as fotografias de Gautherot, encontrei a palavra
síntese no meio do discurso. Sintetizar é a ação do configuracionista. Veja só:
Gautherot voltou repetidamente à Amazônia, fascinado pela paisagem vasta, instável e anfíbia, que desafiava seu olhar europeu e o convidava a uma verdadeira aventura da sensibilidade. O resultado é uma vasta produção de imagens, em que Gautherot a um só tempo trava contato com a nova paisagem brasileira e reflete sobre sua própria memória pictórica ocidental. Ao fazê-lo, Gautherot deixa para trás as fronteiras entre os gêneros fotográficos e cria uma nova síntese de retrato e paisagem, documento e abstração, forma e caos. (http://www.lojadoims.com.br/ims/produto.cfm?id=27583).
Pois então, muito antes de voltar para casa, ainda
sem ter entrado para ver o filme, resolvi tirar uma fotografia da Cidade Flutuante de Gautherot exposta na
sala de espera do cinema para montar um texto sobre configurações. Para isso,
fiz uso de meu celular. O resultado foi horrível, pelo menos do ponto de vista
estético. Você pode conferir abaixo. Como a fotografia de Gautherot estava
protegida por uma moldura de vidro, as condições de iluminação do ambiente
fizeram com que minha sombra se projetasse sobre aquilo que queria fotografar.
Não houve jeito de minha sombra sair da fotografia.
Como você pode ver, o resultado ficou muito ruim.
Seria impossível demonstrar as três partes da fotografia e sua síntese. Tento,
mais duas vezes. Nenhuma melhora no resultado. A sala do filme é aberta e eu
desisto.
O filme que fui assistir é o Dançarino no Deserto. Produção norte-americana, baseada na vida do
dançarino Afshin Ghaffarian, que impedido de dançar no seu país de origem, o
Irã, arrisca tudo junto com alguns amigos para criar uma companhia de dança e fazer
ao menos uma apresentação. Quando criança, Afshin é fisicamente punido por um
professor que o vê dançando em sala de aula. Mas, outro professor vai ajudá-lo
nos primeiros passos da arte. O filme me emocionou muito por trazer à baila a
questão da liberdade individual. O primeiro e único espetáculo que Afshin
consegue realizar com seus amigos no Irã foi representado no filme por uma
coreografia tão bela e emocionante que foi impossível não ficar com os olhos
marejados. Representação magistral do embate entre liberdade e opressão.
Caminhando pelo centro de Curitiba, indo do Crystal
para a Praça Tiradentes, os acontecimentos da noite vão se repetindo em meu
pensamento. No meio do caminho, encontro Admir Pancote, mestre em Administração
pela PUCPR, e amigo que prezo muito. Brevemente menciono a ele sobre o filme,
como me emocionara, e que caminhava ao ritmo de minhas reflexões.
De repente, sintetizo o óbvio. Pelo menos para mim.
Minha sombra é parte de mim. Ela, sem mim, não existe e, tampouco, eu sem ela. Mesmo
ao meio dia, com o sol a pino, ao levantar o pé do chão, dando um passo, lá
está a sombra escondida.
Ora, a fotografia que tirei com meu celular é
também uma configuração, mas uma configuração diversa da que vi na Cidade Flutuante. Em tudo que vejo,
sempre haverá uma parte de mim. Contar para alguém algo que vi, vai além do que
eu vi objetivamente, pois carrega junto a representação que faço daquilo que
vi. Assim, minha fotografia não ficou esteticamente adequada, mas como metáfora
não há nada melhor. Nesse texto, você pode ver a reprodução da fotografia
original e aquela com minha sombra. Meu falar sobre ela, carrega os significados
que lhe atribui. Assim, como falar sobre o filme tem a carga da minha relação
com quem me ajudou a construir conhecimento.
Nesses devaneios, acabo chegando à forma com que
lidei, e continuo fazendo, com aqueles que estudaram ou estudam sob minha
orientação. Faço um esforço contínuo para que esta seja uma relação de
liberdade. Não posso esperar que os estudantes vejam aquilo que vejo, pois cada
um de nós tem sua própria trajetória. Cada um carrega sua sombra que sairá nas
fotografias que fizer. Da mesma forma, os estudantes não podem esperar que eu
lhes ensine a ver. Isso depende da trajetória de cada um e das sombras que
estiverem carregando. Então, o que esperar dessa relação?
Que eu possa, através de exemplos, mostrar os
caminhos alternativos que já percorri e que eles, por meio de suas escolhas,
construam seus caminhos próprios. Livres, eles e eu, para vivenciar uma relação
em que ser humano significa praticar, a cada momento, a solidariedade e o
respeito pelo conhecimento que é a construção de cada um.