Nietzsche em O Anticristo: maldição contra o cristianismo, redigido em 1888, quase ao final do livro, na seção 55, escreveu: Já faz tempo que propus que se considerasse se as convicções não seriam inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras (Humano, demasiado humano I, seção 483)... Chamo de mentira não querer ver algo que se vê, não querer ver algo da maneira que se vê... Esse não querer ver o que se vê, esse não querer ver da maneira que se vê, é quase a condição primeira de todos que são partidários em algum sentido: o homem de partido se torna necessariamente mentiroso (p. 105, do volume 721, da Coleção L&PM Pocket, 2012).
Ao ler este trecho hoje dentro de um ônibus, a caminho de mais um encontro da disciplina de Empreendedorismo e Organizações Empreendedoras que estou conduzindo para uma turma de doutorado em Administração na Universidade Positivo, não pude deixar de associá-lo ao momento eleitoral que estamos vivendo no Brasil nesse mês de outubro. Imediatamente, me vieram à mente, as mais diferentes manifestações a favor de um ou outro candidato que meus contatos no Facebook expuseram, especialmente nos últimos dias que antecederam a votação do primeiro turno. Lembrei-me, obviamente, das escolhas que fiz sobre o que ler e o que não ler, escolhas essas orientadas por minha opção partidária. Nietzsche me soou impressionantemente atual!
Mas, me parece claro, que o irado filósofo (uso irado aqui tanto no sentido tradicional, ou seja, alguém que sente ira, quanto no sentido da gíria atual segundo me informa o wiktionary, isto é, muito bom, muito legal, que agrada bastante: muito bonito, muito interessante, muito excitante, muito moderno, muito divertido etc; doido, louco, maluco ( ) ao usar a expressão partidário não o fez com o sentido de seguidor de uma orientação política professada por um partido político como vemos em nossa sociedade contemporânea. O sentido de partidário em O Anticristo se refere a aquele que se posiciona como simpatizante, adepto ou defensor de uma determinada visão da realidade como esta se revela à sua percepção.
Assim, depois do encontro da disciplina de doutorado, durante o qual pudemos discutir cinco texto sobre empreendedorismo publicados recentemente no Brasil fiquei pensando que, certamente, a afirmação de Nietzsche poderia ser usada para qualificar os pesquisadores partidários de estratégias de pesquisa. De forma simplificada, nos Estudos Organizacionais em geral, e no caso específico do Empreendedorismo, há dois partidos: os positivistas e os antipositivistas. Há muitas possibilidades de desenvolver estudos positivistas, assim como as há para estudos antipositivistas, mas uma distinção central entre os dois partidos reside no uso de métodos quantitativos pelos primeiros e métodos qualitativos pelos últimos.
Durante a condução da disciplina, os doutorandos e eu optamos por uma estratégia de aprendizagem que está centrada na leitura de 40 artigos publicados nos últimos três anos em periódicos brasileiros. Já chegamos à metade da tarefa, e tivemos a oportunidade de refletir sobre ensaios teóricos, estudos empíricos orientados por uma abordagem positivista e outros pelo antipositivismo. Em nossas discussões, pude observar como é difícil valorizarmos favoravelmente (ia escrever positivamente, mas quero evitar a confusão de termos) aqueles textos que apresentam informações que não se ajustam às ideias de nosso partido. Nietzsche me parece incisivamente acurado. Parece que nos recusamos a ver o que lemos ou da maneira que lemos.
Mas, será que há saída para esse prognóstico NIetzschiano? Estamos fadados a mentir enquanto pesquisadores em decorrência das escolhas ontológicas e epistemológicas que fazemos?
Nos meus estudos de empreendedorismo tenho tentado trilhar um caminho que busca conciliar abordagens qualitativas com quantitativas. A investigação no campo do empreendedorismo tem, em minha opinião, e na forma como tento construir meu conhecimento nesse campo, espaço para explicações singulares e explicações coletivas, generalizações teóricas e generalizações estatísticas, medidas e interpretações. Essa minha lida com os opostos, já me permitiu alcunhar-me de pesquisador Macunaíma, um pesquisador sem nenhum caráter. Me sinto confortável com isso. Ou melhor me sentia até hoje!
Depois de ler esse trecho de Nietzche, fiquei perplexo! Afinal, parece que sou apenas mais um tipo de partidário. Nem positivista, nem antipositivista, mas Macunaímico! Portanto, mentiroso?
P.S.: O que me consola é que, pensando bem, nem Nietzsche escapou dessa! Ao escrever o Anticristo se revelou partidário. Portanto, mentiroso?
Ótimo post. Acrescento apenas uma poesia de Drummond para ajudar no debate.
ResponderExcluirA Verdade Dividida
A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.