sábado, 17 de outubro de 2015

Em Trânsito

Dedicado a todos aqueles que estiveram ou estão em trânsito comigo

O título desse post tem múltiplos significados. Encontro-me no aeroporto de Brasília, aguardando o vôo para Curitiba. Acabo de chegar de Lisboa onde fiquei por três dias. Na linguagem da aeronáutica, estou em trânsito. Ficarei nessa condição por pelo menos cinco horas. Tempo mais que suficiente para pensar, escrever, tomar cerveja...

Na sala de espera, vou comprar uma longneck e a vendedora me informa que se tomar quatro, a quinta é de graça. Sozinho, não sei se darei conta do recado... Enquanto isso vou escrevendo. Sóbrio ainda, pois mal comecei a beber da primeira longneck.

Mas, estar em trânsito tem muitos significados. Não é só o aeronáutico. Alguém mais trágico, poderia dizer que na vida estamos todos em trânsito. Seja de forma lenta, ou rápida, passaremos pela vida, indo do nascimento à morte. Não quero me alongar nesse significado. Está além de minhas preocupações. E, ademais, não estou interessado no além! Me interessa essa vida da qual sou consciente. Haverá outras? Para alguns, sim. Para mim, não sei! Vai além - eis o além de novo - de minha capacidade de imaginação. Algumas vezes, sinto que gostaria de ter o conforto dessa crença, mas não consigo.

Aos 58 anos, a quase meio caminho dos 59, estou em trânsito. De onde será que vem nosso costume de marcarmos nossa passagem pela vida em tempos anuais? A cada começo de ano, não me refiro ao do calendário, mas a cada começo de novos anos de vida, parece que é inevitável que reflitamos sobre o que foi feito no ano anterior e o que queremos para o próximo. A cada 365 dias, transitamos entre o que queríamos ser e o que conseguimos ser. Para mim, a diferença é sempre brutal! Mas, adepto da emergência - daquilo que emerge em nossa lida com o cotidiano - como modo explicativo da vida, oposto ao deliberado, não me surpreendo. No trânsito anual, a cada 365 dias, nosso destino é refeito e reimaginado constantemente. Ainda bem, se tudo corresse como o planejado acho que eu morreria de tédio. Seria um triste fim para o tipo de trânsito que comentei acima.

Nessa altura do texto, estou na segunda longneck. Será que darei conta das quatro primeiras, para ganhar a última? Tempo é o que tenho de sobra. Não sei se sobrará lucidez ao final do texto! O que me lembra de um novo significado para trânsito: ir da lucidez à embriaguez. Espero ser capaz de parar a meio caminho. Será que conseguirei?

Mas, voltando ao tédio, ou melhor à fuga do tédio, lembrei-me de uma passagem que li no livro de Jean-Claude Carrière – A Linguagem Secreta do Cinema – quando estava voando de Curitiba para Lisboa. Uma obra magistral que me marcou. Carrière discorria sobre o poder das imagens, e lembra que, mesmo poderosas, estas têm limites. Para ele, o tédio é uma das sentinelas que, quando parecemos estar entorpecidos, cochilam dentro de nós. De repente, ele desperta. De forma absolutamente bela, eis como Carrière descreve o despertar do tédio:

Podemos estar entorpecidos, mas as sentinelas cochilando dentro de nós ainda estão lá. Dentre estas, a principal é o tédio, o velho e bom tédio, esta nossa maravilhosa capacidade de perder o interesse, de instintivamente recusar a mediocridade que nos é oferecida. O tédio é nosso fiel aliado, nossa linha de frente em defesa, aquela que os inimigos têm dificuldade de ludibriar (p. 67).

Me impressionei com a forma positiva com que Carrière se refere ao tédio. Mais à frente, na mesma página, ele descreve o surgimento do tédio em uma sala de cinema:

O tédio é puro, incorruptível, irrefutável. É acompanhado por sinais físicos, visíveis, contra os quais toda argumentação é inútil. Começa como uma sensação de vazio na boca do estômago, seguida de perto por um rápido piscar de olhos, precursor do bocejo. A atenção vagueia, o olhar perde o foco, começamos a reparar nas pessoas ao redor, na sala de exibição, nas luzes tentadoras indicando discretamente a saída; nos perguntamos que horas devem ser, para qual restaurante seguir depois do cinema, pensamos até na rotina do dia seguinte. Lá no fundo, torcemos para o filme se acelerar e chegar logo a uma conclusão, gostaríamos de ser uma hora mais velhos...

Me emocionei ao ler este trecho, ainda no avião de Curitiba para Lisboa. Me emocionei porque me vi nele! Hoje, quatro dias depois, vejo o trânsito significado nas palavras sobre o tédio de Carrière. O trânsito do desejo em direção ao afastamento, à repulsa, talvez até ao asco... Carrière fala do cinema, mas de forma metafórica, o tédio, enquanto trânsito, pode significar a busca do novo, do diferente, do não entediante em qualquer dimensão de nossa vida. Trânsito também!

Vou pegar a terceira longneck. Esse calor de Brasília estimula a sede! Já volto.

Pego uns petiscos para acompanhar a cerveja. Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém!

Ainda sóbrio, chego ao trânsito que me inspirou este texto. Comecei minha carreira docente na Universidade Estadual de Londrina em agosto de 1981. Quatro anos antes, havia escolhido cursar administração porque estava trabalhando com meus pais no pequeno supermercado que tiveram em Londrina. Pensava em auxiliá-los na gestão da empresa. Todavia, dois ex-professores, Nardir e Genésio, me convidaram para ser auxiliar de ensino no Departamento de Administração. Não fiz concurso, naquele tempo esta não era uma prática institucionalizada. Seis meses depois de ter sido contratado, houve uma regulamentação da carreira docente, e fui beneficiado por já estar trabalhando na universidade. Fui enquadrado no primeiro nível da carreira docente. Um privilégio que pode parecer, para muitos, algo errado. Mas, sem falsa modéstia, acho que Nardir e Genésio estavam certos, eu tinha que fazer o trânsito da pequena empresa familiar para a docência. Em determinado tempo, deixei as atividades na pequena empresa dos meus pais e passei a me dedicar somente à universidade. Creio que fui bem sucedido! Mas, não posso deixar de reconhecer, que outro poderia ter sido bem sucedido também. Carrego essa pequena (?) culpa! Somente 31 anos depois, fiz meu primeiro concurso, o de professor titular da UFPR.

A docência tem sido um trânsito muito significativo em minha vida. Estou nele há mais de trinta anos. Uma longa estrada que tenho percorrido. No caminho encontrei pessoas maravilhosas. Encontrei as odiosas também! Mas dessas me esqueço logo. Epa! Acho que não deveria escrever essas coisas! Será que, no trânsito entre sobriedade e embriaguez, já estou mais próximo da última? Acho que não. O discurso ainda me parece lógico! Mas, não tenho certeza que sou o melhor juiz disso!

Nos últimos quinze anos, me envolvi com o ensino de mestrado e doutorado em Administração. No entanto, o tédio parece ter acordado. Essa maravilhosa força de que fala Carrière! De uns tempos para cá, comecei a sentir os sinais físicos de que falou Carrière. Principalmente um vazio na boca do estômago! E, também, um desejo muito grande de que o filme acabe logo! Tenho procurado as luzes que indicam o caminho da saída. Bocejos têm sido frequentes. Simone, minha amiga, diria que tenho olhado muito para o teto. Este, segundo ela, é um claro sinal que dou, sempre inconsciente, de que algo ou alguém perdeu meu interesse. Eu prefiro dizer que tenho déficit de atenção. Obviamente não diagnosticado!

Mas, o que fez com que o tédio despertasse? Essa pergunta, que talvez você me faça, aliás com todo o direito, merece uma resposta.

A minha resposta tem a ver com o fato de que transformaram o gênero do filme. O que era uma aventura, algumas vezes com um pouco de drama, foi transformado em filme de horror. Eu nunca gostei de filme de horror!

A aventura do conhecer foi transformada no horror de publicar. Ao longo dos anos, houve um redirecionamento da pós-graduação stricto sensu em Administração no Brasil. Aos poucos, nós professores, fomos nos transformando em produtores de textos que têm que ser publicados, custe o que custar. A escrita deixou de ser a consequência de reflexões e estudos e passou a ser uma obrigação. Nosso papel passou a ser o de um transformador: transformamos pessoas em escrevinhadores de artigos. Por incrível que pareça, isso é uma exigência para a concessão do título de mestre ou doutor a que os alunos devem cumprimento! Está nos regulamentos de muitos cursos (será que em todos?) a obrigação do aluno comprovar a publicação ou, pelo menos, o encaminhamento de algum texto para publicação em periódico nos chamados extratos superiores do Qualis. Parece que ficou em segundo plano ajudar pessoas a se formarem como mestres e doutores.

Nessa sala de exibição, não havia como o tédio não despertar!

Com o tédio, vem um novo trânsito: quero voltar a ser apenas professor de Administração. Quero compartilhar com os estudantes uma jornada temporária sobre o que significa a Administração. Como praticá-la? Quais as possibilidades e os limites de um agir administrativo em tempos de desenvolvimento sustentável? Tenho que deixar a pós-graduação stricto sensu. Minha relutância em publicar o que não julgo publicável poderá prejudicar a avaliação do programa. Me volto para o ensino de graduação.

Se, ao longo dessa jornada, um aluno ou uma aluna, sentir que está pronto ou pronta para escrever alguma coisa, espero poder ajudar. Mas, não posso mais continuar nesse filme de horror! Só posso escrever quando sinto que tenho algo a dizer. Gostaria que esta fosse uma escolha dos alunos também. Foi o que fiz há poucos dias quando resolvi descobrir sobre o que se escreve no tema do empreendedorismo sustentável no Brasil. Cá entre nós, vi tantos textos que foram escritos para cumprir tabela! Os textos revelavam sua intenção oculta: marcar pontos na avaliação do programa de pós-graduação. De ponto em ponto, a pós-graduação enche o papo! E o saco dos leitores!

Ups! Será que o teor alcoólico está subindo mais do que o aceitável?

Minha ida a Portugal foi para apresentar um texto na 5a. Conferência Ibérica de Empreendedorismo que aconteceu em Oeiras entre os dias 15 e 16. Nesse texto há uma história que queria contar. Não é o melhor texto que já fiz na minha vida, mas é um texto que saiu de minhas entranhas. Tinha que vir a público! Será que vai se tornar um artigo em alguma revista científica? Talvez sim, mas se vier a ser publicado, o que menos interessa é o status da revista no Qualis da Capes. O que me interessa é aprofundar o entendimento de uma experiência empreendedora à luz de algumas proposições conceituais. E, com sorte, ser capaz de ir além delas.

Está chegando a hora de ir buscar a quarta longneck. Mas, encerrarei este texto antes disso. Não acredito que seja possível retornar aos filmes de aventura com um pouco de drama. O caminho da pós-graduação stricto sensu está predestinado, o gênero dominante é e será o horror. Nos anos que me restam na atividade docente, voltarei a focar exclusivamente na graduação. Nesse nível de ensino, farei ensino, pesquisa e extensão. Na pesquisa, a iniciação científica, uma aventura com alguma ação e um pouco de drama.

Depois, quando estiver me aproximando da aposentadoria, partirei para mais um trânsito: fazer algo no campo do cinema. O que será? Ainda não sei. Se você se lembra, algumas linhas atrás falei que sigo a emergência. Algo surgirá e não será entediante!

Enquanto isso, se você quiser conversar comigo, sobre administração, sobre cinema, sobre a vida, qualquer coisa, desde que não seja futebol, religião e política, você sabe: a porta de minha sala está sempre aberta. Se eu olhar para o teto, me puxe para baixo. Tenho certeza que algo interessante você tem a me contar!

Vou pegar a quarta longneck. Ainda há tempo de sobra antes de meu embarque com destino a Curitiba. Vou garantir meu direito à quinta garrafa. Hic!


5 comentários:

  1. Que escrita agradável ... Mesmo sabendo que o sr não gosta de futebol, fico feliz por ter chego ao que parece ser algo próximo ao 45o minuto do segundo tempo e ter tido a oportunidade de jogar com o sr. Embora esteja claro que as regras são o problema e não o jogo, como sabemos se precisamos tomar uma água e respirar ou pedir substituição?

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  2. Que o trânsito e a emergência esclareçam .... Com certa urgência

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  3. Uma aventura com pouco de drama não precisa terminar com o clássico herói americano montado em seu cavalo, destinado a vagar solitário de costas para a trama que acabou ao subir os créditos... as novas aventuras com um pouco de ação, drama e uma pitada de comédia emergem das escolhas que compartilhamos para a próxima trama... eu por exemplo tenho preferência por um roteiro feito em várias mãos, onde boa relação com a personagem e o ensaio descontraído fazem a qualidade da gravação!
    Meu querido mestre, aproveite o trânsito da cerveja entre a garrafa e o coração, o trânsito das pessoas em Brasília e entre Brasília e Curitiba. O trânsito do relógio entre o que é e o que já vem... da cabeça entre o tédio e a nova aventura, devaneio ou leitura.
    Adorei o texto ! Abração e até!

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  4. Meu querido Mestre...quando leio os seus textos é como se tivesse ouvindo-o. Que leveza!!! Você em trânsito nos dando sempre uma carona. Obrigada!

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