segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Reflexões sobre um modo quase rogeriano de ensinar

Quando fiz mestrado em administração na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, entre 1982 e 1983, fiz duas disciplinas de Didática do Ensino Superior, com o Professor Gilberto. Naquela época fiquei positivamente impressionado com as ideias de Carl Rogers sobre educação, especialmente as presentes em seu livro Liberdade para Aprender que propunham uma aprendizagem centrada no aluno. Ao longo desses trinta e cinco anos de carreira no ensino universitário o meu descontentamento com processos de ensino/aprendizagem centrados no professor foi se acentuando. Tenho feito leituras recentes de outras obras de Rogers tentando me aproximar de uma prática rogeriana sempre que possível.
Com o passar dos anos, sentia-me cada vez mais desconfortável em ter que dirigir a aprendizagem de alunos em idade adulta, especialmente quando era responsável por conteúdos onde não é possível ter uma resposta única para o agir administrativo. A prática da administração é apoiada em um conjunto de técnicas, instrumentos e ferramentas, tais como, fluxo de caixa, orçamento, programação linear, layout, plano de negócio, planejamento estratégico, métodos de diagnóstico, entre outros. Mas, o que considero essencial na administração é que esta é uma prática de (re)construção de uma determinada ordem social que depende de uma competência complexa que se centra na busca do consentimento, interesse e ação efetiva de outras pessoas, seja dentro da própria organização ou fora dela. Essa re(construção) pode ocorrer em diferentes níveis da sociedade: grupos de pessoas, partes da organização, organização, grupos de organizações, setores econômicos, nações. Nesse sentido, a maior parte do conhecimento administrativo útil não é universal, mas sim contingencial, devendo sua prática se ajustar a diferentes momentos ou situações organizacionais. Isso significa que, embora o domínio de ferramentas e métodos seja importante para a prática da administração, seu uso não é o que determina o alcance dos objetivos desejados coletivamente por todos os envolvidos nessa (re)construção social.
Ora, o ensino de métodos, ferramentas e instrumentos pode ser mais frutífero se é feito de forma diretiva por um professor que domina seu uso e é capaz de treinar os estudantes na utilização correta dessa parafernália administrativa. Mas, o cerne da administração não se pode aprender por processos instrumentais, ao contrário, a construção de conhecimento em administração passa por processos reflexivos e devem ser objeto de uma aprendizagem, que no dizer de Carl Rogers, deve ser significativa. Mas o que é isso?
Em Liberdade para aprender, Rogers diferencia entre a aprendizagem instrumental e a significativa. A primeira está relacionada com a memorização de um modo de fazer e sua consequente reprodução de maneira certa. É dirigida pelo professor que é visto e, quase sempre, se comporta como um depósito de saberes que comunica conhecimento. Por outro lado, a aprendizagem experiencial ou significativa tenta desenvolver o conhecimento sobre modos de fazer, na busca da construção de um conhecimento individual sobre o como agir. Esta aprendizagem é autodirigida, cabendo ao professor um papel de facilitador que orienta e ajuda a criar condições propícias para que ocorra.
A proposta rogeriana baseia-se no pressuposto de que a construção do conhecimento é automotivada e centrada em alguns princípios. Na página 5 de Liberdade para aprender aprendi com Rogers que a aprendizagem significativa ou experiencial:
·         Tem a qualidade de um envolvimento pessoal: a pessoa, como um todo, tanto sob o aspecto sensível quanto sob o aspecto cognitivo, inclui-se no fato da aprendizagem;
·         É auto-iniciada: mesmo quando o primeiro impulso ou o estímulo vem de fora, o senso da descoberta, do alcançar, do captar e do compreender vem de dentro;
·         É penetrante: suscita modificação no comportamento, nas atitudes, talvez mesmo na personalidade;
·         É avaliada pelo educando: este sabe se está indo ao encontro das suas necessidades, em direção ao que quer saber... O lócus da avaliação, pode-se dizer, reside afinal no educando; e
·         Significar é a sua essência: quando se verifica a aprendizagem, o elemento de significação desenvolve-se, para o educando, dentro da sua experiência como um todo.
Mais ao final do livro, Carl Rogers elabora sobre o propósito da aprendizagem significativa. Para ele, esta deve ajudar o estudante a tornar-se uma pessoa em pleno funcionamento, ou seja:
·         Uma pessoa que funcione livremente em toda a plenitude das suas potencialidades organísmicas;
·         Uma pessoa que será realista, auto-engrandecedora, socializada e apropriada em seu comportamento;
·         Uma pessoa criativa, cujas específicas formas de comportamento não são facilmente previsíveis; e
·         Uma pessoa sempre em mudança, sempre em desenvolvimento, sempre a descobrir-se a si mesmo e ao que há de novo em si, a cada instante sucessivo do tempo.
Mas, é possível ser rogeriano dentro das restrições que nos impõe nosso sistema de ensino universitário? Não é possível, mas podemos tentar nos aproximar dessa ideia fazendo alguns ajustes em nossas práticas enquanto professores. É o que venho tentando, tanto na graduação quanto na pós-graduação. Nesta última, é uma tarefa menos árdua, pois um mestrando ou doutorando tem, ou pelo menos deve ter, um alto grau de autonomia na escolha de que conhecimento deseja construir. Na graduação, as amarras são mais fortes. Espera-se um comportamento mais diretivo dos docentes. Uma ênfase muito forte em conteúdo a ser transmitido é desejada. Tenho resistido na medida do possível a essas restrições sistêmicas. Em poucas palavras, eis o que consigo fazer.
Primeiramente, reconheço as restrições que devo observar: a) temos um conteúdo que deve ser analisado (Mas podemos escolher o que enfatizar, o que aprofundar, o que não aprofundar, até mesmo ir além!); b) temos um cronograma definido e obrigação de estar presente nos encontros previstos (O professor em 100%, os estudantes em 75%); c) temos que fazer avaliação formal (podemos usar diferentes formas, por exemplo auto-avaliação (estudante) e hetero-avaliação (professor); podemos escolher como fazera avaliação); d) a avaliação deve ser feita em dois momentos (na metade e ao final dos encontros semanais).
Em segundo lugar, tento misturar um mínimo de direção com um máximo de escolha do que aprender por parte dos estudantes. Quando começo uma disciplina, estabeleço um prazo de duas semanas, para o estudante refletir sobre suas metas de aprendizagem e preparar seu projeto de aprendizagem onde estabelecerá objetivos e duas produções significativas. Estas produções podem ser na forma de: a) ensaio sobre um dos temas de estudo da disciplina; b) relato de um estudo de caso de uma organização; c) organização de um evento sobre tema da disciplina (implica na entrega de um relato escrito para documentação); d) relato de uma pesquisa empírica sobre algum tema da disciplina; e) qualquer outro projeto que o estudante julgue que possa ser significativo na construção de seu conhecimento. As produções significativas podem ser individuais ou grupais. Eu, por outro lado, estabeleço um programa de leituras sobre os conteúdos da disciplina, cabendo a cada estudante a leitura de um dos textos e apresentação para a turma. Os demais leem os textos que quiserem ler. Se o estudante quiser pode procurar outro texto diferente daquele que lhe foi distribuído desde que seja sobre algum tópico previsto na ementa da disciplina.
Por fim, assumimos alguns compromissos e um sistema de avaliação misto. Os meus compromissos são: a) estar presente em todos os encontros previstos (minha obrigação); b) sugerir e organizar atividades de aprendizagem que possam ser significativas; c) prestar orientações sempre que for necessário, desde que previamente agendado quando não for no horário dos encontros; d) buscar fontes de informação documentais e pessoais que possam ser acessadas pelos estudantes; e) tentar ser justo na hetero-avaliação; f) não definir atividades ou tarefas a serem feitas extra-classe além da leitura e preparação da apresentação de um texto; g) registrar presenças em dois momentos (antes do intervalo e ao final do encontro). Os compromissos do estudante são: a) estar presente em 75% dos encontros; b) realizar as produções significativas que escolheu; c) apresentar de forma consistente o texto que lhe couber; d) aprender o que julgar significativo; e) tentar ser justo na sua auto-avaliação.
A cada semestre insisto nesse formato. Algumas vezes com bom resultado, outras vezes o resultado não é tão bom. Neste semestre não estamos caminhando bem. Mas, quando em dúvida, procuro sempre pensar que o estudante é o protagonista de sua aprendizagem. Eu sou um mero coadjuvante. Ele ou ela precisa saber que, quando necessitar, estarei disposto a ajuda-lo(a) na construção de seu conhecimento. Como protagonista é o melhor juiz de seu avanço na construção do conhecimento. Dessa forma, o sistema de avaliação das disciplinas envolve uma autoavaliação (60% da nota) e uma heteroavaliação das produções feitas por mim (40%).
A autoavaliação é feita por meio de um instrumento que é construído de forma coletiva pelos estudantes em uma dinâmica que realizo no início de cada turma semestral. A partir de uma pergunta (o que é significativo para avaliar sua aprendizagem?) são construídos dez itens que serão respondidos individualmente pelos estudantes numa escala de 0 a 100. Na turma atual, os itens que surgiram foram:
Sempre busquei conhecimento sobre os temas da disciplina por iniciativa própria (Proatividade)
Fui sempre pontual nos encontros dessa disciplina (cheguei no horário estabelecido)
Minha participação nas atividades em sala foi muito intensa
Me organizei de forma adequada para a aprendizagem nesta disciplina
Me esforcei muito para aprender sobre os temas dessa disciplina
Fui sempre responsável no que diz respeito às atividades previstas para esta disciplina
Sempre estive presente nos encontros da disciplina em que deveria estar (assiduidade)
Meu interesse sobre esta disciplina sempre foi muito elevado
Sempre tive um comportamento adequado a um ambiente de aprendizagem durante as aulas
Sempre me comportei de forma ética na realização das atividades da disciplina

Além desses dez itens, havia duas questões dissertativas que indagavam: O que você mais gostaria de saber sobre o tema central desta disciplina? Por que?; e 2. O que você sabe sobre o tema central desta disciplina?
Depois que apliquei a primeira autoavaliação nesse semestre, resolvi fazer um pequeno teste de confiabilidade das médias atribuídas a um dos itens. Para isso utilizei a única medida objetiva que tenho sobre o comportamento dos estudantes nesse semestre que é o número de faltas de cada um. Fiz um teste de correlação entre a nota atribuída ao item de assiduidade realizada pelo estudante e o número de faltas que teve na primeira metade da disciplina. A correlação, considerando as respostas de 55 estudantes foi de -0,73 com um nível de significância menor que 0,001! A correlação entre média dos dez itens e número de faltas também foi negativa, mas menos forte e com um nível de significância menor que 0,10.
O resultado foi muito significativo, em termos estatísticos evidentemente. Mas, para mim significou um reforço significativo na construção de meu conhecimento e crença na possibilidade de tentar se quase rogeriano em minha prática docente. Fiz também uma pequena comparação entre as respostas de mulheres (33) e homens (22). Para quase todos os itens da avaliação, as médias não tiveram diferenças entre os gêneros. Apenas na questão da participação é que houve uma diferença significativa sendo que as mulheres se avaliaram como mais participativas do que os homens. Um rogeriano puro não estaria preocupado com estas objetivações de aprendizagem, mas este pequeno teste me deu um conforto e vontade de persistir nesse caminho.

2 comentários:

  1. Lindo Fernando. Obrigado por compartilhar.

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  2. Obrigado Simone. Além de amiga preciosa, é muito bom ter você como colega de trabalho também.

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