domingo, 9 de março de 2014

A cuidadora de Sócrates

Em memória de Robinho, irmão de Sara.

Seu bom humor deixará  saudades!

Lara, biscatinha ou biscatona? Essa pergunta me pôs a pensar sobre a construção do sentido que damos às nossas vivências.

Paulo e eu estávamos tomando um chope na praça de alimentação de um shopping em Maringá, quando uma moça com uma bandeja na  mão pediu licença para compartilhar nossa mesa:

_ Posso sentar aqui? Daqui vinte minutos entro no trabalho. A praça está cheia.

_ Fique à vontade, eu disse.

Paulo e eu continuamos a botar o papo em dia. De repente, entre um gole de chope e uma batata frita, pergunto o nome da moça concentrada em seu almoço.

_ Lara. E o seu?

_ Eu sou o Fernando. Ele o Paulo. Você trabalha no shopping?

_ Não. Estudo técnica de enfermagem e trabalho como cuidadora. Cuido de um senhor idoso. Começo meu trabalho daqui a pouco.

Nesse ponto da conversa, o celular do Paulo toca. Era a esposa avisando que éramos esperados para almoçar na casa da sogra. Somos concunhados, o que significa que compartilhamos a sogra..

Passa o dia, de noite ligo pro Paulo, perto das nove e meia:

_ Paulo, já foi dormir? Eu perguntei.

_ Ainda não.

_ Então vou dar uma passada aí. Preciso comprar minha passagem de volta para Curitiba.

Precisava usar a INTERNET. Marinelva, nossa cunhada, vai comigo. Sara fica com a mãe, lhe fazendo companhia enquanto esperamos a chegada do corpo de Robinho que falecera em um acidente na Bahia.

Em casa de Paulo, conversamos sobre a morte. De repente surge a questão da velhice. Da velhice a conversa retorna à morte. Robinho, aos 44, morreu muito cedo. Mas, é a velhice que nos assusta mais que a morte.

Nessa altura da conversa, Paulo lembra da morte de Sócrates, o filósofo, não o futebolista. Para Paulo, o ato de Sócrates tomar cicuta poderia ser interpretado como uma escolha alternativa à velhice. Um sentido diferente àquele atribuído por muitos estudiosos, o de que Sócrates decidiu observar a lei, essa construção social que erigimos para tentar ordenar a vida coletiva. Para muitos, Sócrates era  um legalista, o que justificaria sua escolha. Teria Sócrates decidido por sua morte ao invés dos riscos da velhice? Não temos resposta a essa pergunta. Mas,  ela pode ser buscada em motivações distintas, razoavelmente verossímeis.

Comento:

_ Será que a escolha de Sócrates teria sido outra se naquela época houvesse cuidadoras?

Minha pergunta surge da lembrança do encontro com Lara. Conto brevemente a história do encontro com Lara aos demais que participavam da conversa. De vozes femininas, surgem duas afirmações:

_ Biscatinha! Uma disse.

_ Biscatona! Ecoou outra.

Lembrei-me da teoria de personalidade de George Kelly, que em 1955 propôs a Teoria dos Construtos Pessoais. Nesta teoria, Kelly defendeu a ideia de que os humanos constroem o significado de suas vidas por meio de um sistema de construtos. Esse sistema de construtos baseia-se na criação de categorias que usamos para classificar nossos eventos, coisas e pessoas com que convivemos.

As categorias surgem das similaridades e diferenças que percebemos no que vivenciamos. Uma forma de pensar parecida com a de um cientista. Os construtos que criamos são bipolares. Segundo Kelly, para o mundo ser compreensível, uma ideia só faz sentido se compreendemos o seu oposto. Gordo ou magro, bonita ou feia, triste ou alegre, limpo ou sujo, santa ou devassa, biscatinha ou...

Desde os anos 90 do século passado, uso essa teoria para tentar compreender os modelos mentais que dirigentes de pequenas empresas desenvolvem para compreender o mundo de seus negócios e tomar decisões baseados neles.

A beleza das ideias de Kelly - olha ai eu em busca da beleza no conhecimento de novo - reside no dinamismo desse sistema de construtos. Cada um de nós desenvolve um sistema de construtos único, mas na interação com outros nossos sistemas vão sendo compartilhados e transformados, um vir a ser contínuo que só a morte interrompe.

O que Lara seria? Muitas categorias poderiam lhe ser aplicadas, dependendo dos modelos mentais únicos de cada pessoa que pudesse presenciar a cena do shopping. Nesse momento senti falta do bom humor de Robinho.

Resposta certa não importa agora! Talvez, essa poderia ser aproximada com um pouco mais de papo com Lara. Um telefonema abreviou essa conversa!

A mesma coisa acontece nas minhas conversas com dirigentes de pequenas empresas. Alguém ou algo faz com que a conversa tenha que ser encerrada. Eu, pesquisador, fico com uma visão parcial de seus modelos mentais. Sempre tenho que reconhecer as limitações do que posso afirmar a partir dessas conversas. É a vida! É a condição constante da busca do conhecimento: a humildade de afirmar que a explicação dada faz sentido, mas pode ser outra.

Enfim, qualquer que seja a Lara, que seja feliz! Ao destino, meu muito obrigado por esse encontro. É provável que um dia, em um futuro muito distante, me lembre de Lara e busque os serviços de uma jovem cuidadora. Como ela mesmo disse em nosso curto encontro:

_ Os homens preferem cuidadoras jovens! (Olha ai um modelo mental se exibindo a um cientista que queira enxergar).

Prefiro isso à cicuta de Sócrates!

Nenhum comentário:

Postar um comentário