terça-feira, 4 de março de 2014

Breve análise sobre a questão do mérito no empreendedorismo

Instigado por um texto de Clóvis Gruner sobre a meritocracia (http://www.chuvaacida.info/2014/02/a-meritocracia-e-uma-utopia.html), registrei no Chuva Ácida uma observação com o seguinte teor:

"Clóvis, esse trecho de comentário que você usou é um tipo de argumento muito presente na literatura de empreendedorismo. De forma simplória, reduzem o ato de empreender a simples questões de apetência e competência, sem nenhuma referência a outros aspectos da desigualdade entre pessoas. Isso me deixa muito angustiado com o nível das discussões acadêmicas sobre o assunto. Obrigado pelo texto."

Eu me referia ao seguinte texto que Clóvis usara como ilustração de uma forma de pensar que deixa de levar em consideração a desigualdade de condições entre as pessoas como reflexo de injustiças sociais:

"Na sociedade de mercado não há essa utopia, há diferenças de classes (como também há nas ditaduras ditas comunistas), porém, quando a sociedade aceita meritocracia e a enxerga com bons olhos, TODOS têm condições de alcançar uma qualidade de vida. 
A ideia de que a riqueza se resume a um bolo fatiado é estapafúrdia! Riqueza produz mais riqueza, a população não tem de se contentar com aquele pedaço do bolo, pois ele se multiplica, basta o cidadão estudar, se qualificar, trabalhar... mas isso poucos querem, então, para muitos, sobra a utopia do comunismo."

Clóvis Gruner, em seu texto no Chuva Ácida, nos apresenta brevemente as condições históricas do surgimento da meritocracia. Reproduzo parte de seu texto que, em minha opinião, é central para a discussão das condições para empreender:

Diferente do comentário que motivou esse texto, a meritocracia não é uma panaceia a justificar a desigualdade social apelando à competência de alguns poucos enquanto acusa, irresponsavelmente, a indolência da maioria. Ela contém, desde o berço, a possibilidade utópica de que as condições objetivas mínimas de igualdade serão asseguradas para que os indivíduos possam, livremente, exercer seus talentos. Daí o projeto, acalentado pelos iluministas do setecentos, de uma educação universal, entendida como condição primária à aquisição das habilidades necessárias para que se pudesse, efetivamente, falar em uma sociedade baseada no mérito.

Nesse mundo virtual que compartilhamos, minha observação fez com que Vinicius Atz, mestrando em Administração na UFPR, me apresentasse, pelo Facebook, uma dúvida, embora afirmasse concordar com o texto de Clóvis:

"Minha dúvida é como não ligar o conceito de empreendedorismo com o de meritocracia, visto q até na competição entre empresas entra o mérito"

Em seguida sugeriu que esse poderia ser um tema de post neste blog.

Minha resposta ao Vinicius foi:

"Sim, mas a meritocracia tem que se dar a partir de uma igualdade de condições para desenvolver competências. É uma boa sugestão de tema pro meu blog. Abcs."

Aceitando a sugestão do Vinicius, fiquei pensando se haveria evidências desta minha afirmação. As coincidências da vida, fizeram com que no dia seguinte chegasse às minhas mãos um exemplar do Relatório Executivo do GEM 2013 – Empreendedorismo no Brasil. Neste documento encontrei alguns dados interessantes que podem ser evidências do efeito da desigualdade social no empreendedorismo brasileiro.

Na tabela 1.3, o relatório apresenta as taxas específicas de empreendedorismo inicial conforme algumas variáveis sociodemográficas. Essas taxas indicam o percentual da população brasileira entre 18 e 64 anos envolvidos com a criação ou gestão de um empreendimento inicial, ou seja, empreendimentos que surgiram há mais de três e menos de 42 meses.

Para os empreendedores iniciais, a faixa de renda familiar indica que quanto maior esta for, maior é o percentual de empreendedores neste segmento da população. Isto é, para rendas familiares de menos de 3 salários mínimos (SMs), a taxa foi de 16,8% da população entre 18 e 64 anos. Na faixa entre 3 e 6 SMs esta subiu para 18,3%. Entre 6 e 9 SMs, chega a 22,6%, caindo para 18,8% para rendas familiares acima de 9 SMs.

Ou seja, há quase que uma relação linear positiva entre faixa de renda da família e envolvimento do indivíduo com a criação de um novo empreendimento. Parece-me que isto pode representar uma relação entre desigualdade social e condições para empreender.

Uma outra relação, em forma de U, aparece quando se analisa o nível de escolaridade dos empreendedores iniciais. Para aqueles cuja escolaridade é menor que o segundo grau completo, a taxa foi de 17,0%. Com escolaridade de segundo grau completo, a taxa subiu para 18,5%. No entanto, para as pessoas com escolaridade maior que segundo grau completo, a taxa caiu para 15,8%.

De novo, uma possível relação entre desigualdade, agora medida pelo acesso à educação e condições para empreender.

Os estudos do GEM apresentam uma segunda distinção relevante para essa exploração inicial entre meritocracia e empreendedorismo. A motivação para empreender é dividida em duas classes: por oportunidade ou por necessidade. Conforme exposto no próprio texto do relatório, “os empreendedores por necessidade são aqueles que iniciam um empreendimento autônomo por não possuírem melhores opções de ocupação, abrindo um negócio a fim de gerar renda para si e suas famílias. Já os empreendedores por oportunidade são os que identificaram uma chance de negócio e decidiram empreender, mesmo possuindo alternativas de emprego e renda”.

Em geral, empreendimentos motivados por necessidade têm menores chances de sobrevivência do que aqueles motivados por oportunidade.

Na tabela 2.3, o relatório apresenta a distribuição dos empreendedores iniciais segundo a motivação para empreender e características sociodemográficas. Nessa relação, a meu ver, surgem indicadores que podem revelar a falácia da meritocracia no empreendedorismo como principal aspecto da explicação do sucesso empreendedor.

Em primeiro lugar, quanto maior a escolaridade da pessoa, maior é a taxa de motivação por oportunidade. Em segundo lugar, quanto maior a renda familiar do empreendedor inicial, maior é a taxa de empreendedorismo por oportunidade. A tabela abaixo mostra essas relações:

Característica Demográfica
Motivação para Empreender
Oportunidade
Necessidade
Grau de Escolaridade
Menor que segundo grau completo
61,2
38,8
Segundo grau completo
77,5
22,5
Maior que segundo grau completo
92,1
7,9
Faixa de Renda
Menos de três salários mínimos
62,5
37,5
3 a 6 salários mínimos
81,8
18,2
6 a 9 salários mínimos
93,8
6,2
Mais de 9 salários mínimos
92,2
7,8
Fonte: Extraído do Relatório Executivo Empreendedorismo no Brasil 2013

Esta aí uma oportunidade de pesquisa que merece ser explorada! 

Vinicius Atz, muito obrigado pela sugestão de post.

2 comentários:

  1. Professor Fernando,
    Parabéns pelo texto "canavalesco"
    Realmente esse tema é muito instigante e merece ser explorado.
    Abraços,
    Karla

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    1. Fernando, tema importante que desperta o interesse e merece ter continuidade de discussão, talvez se pudesse apresentar as regiões do País onde tem maior e menor incidência de empreendedores, o perfil deles, tipos de negócios, que tal? abs, Irene

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