domingo, 28 de junho de 2020

Entre viajantes e fregueses, o assobio de seu Gimenez

Na última história, me inspirei com a presença da vida em suas múltiplas facetas no cotidiano de uma pequena empresa. Ao narrar sobre dois momentos de compra e venda, na interação de meu pai com os viajantes, disse mais sobre o humano do que sobre o negócio. Me fez bem aquela escrita.
Fico aqui matutando em busca do que me levou a me tornar um contador de memórias. Não sei se tenho a resposta. Nem sei se há uma resposta. Talvez, haja muitas. Talvez, nenhuma. Mas, o que importa isso?
Se fosse pressionado a responder, diria que não há como negar que minhas histórias surgem de algo que sempre gostei de fazer: observar a vida. Quieto em meu canto. Quase não percebido. Meio escondido. Assim, a vida, talvez envergonhada, sem graça, ou ainda por pura exibição, para chamar minha atenção, não ficasse sem se mostrar para mim.
Pode ser que, observar a vida, às vezes não notado, pode ter ajudado a me tornar esse escrevinhador depois dos cinqüenta. Mas, não explica o porquê da escrita. Deixa isso pra lá. Há essa premência de fazê-lo. Recriar na mente, momentos lembrados. Me deu vontade de contar mais uma. A razão não importa! Quem sabe um dia, eu a descubra. Vamos a ela?
Então, enquanto narrava os dois momentos de compra e venda, na história anterior, tentei me lembrar dos nomes de alguns dos viajantes. Naquela hora lembrei-me apenas de seu Bino Fuganti. E de seu filho Carlos. Forcei a memória para lembrar outro nome. Mas, ele não veio. Embora sua imagem estivesse fresca na memória. Um homem de óculos. Assim, como seu Bino, muito próximo de meu pai. Pai de uma amiga de Kilda, também professora de inglês. De longa convivência. Décadas. Não me lembrei do nome. Hoje me veio o nome à lembrança: seu Tedeschi. Ah, a memória! Tem vontade própria.
Ele e seu Bino eram sempre bem humorados. A negociação entre eles e meu pai, sempre envolvia uma espécie de primeiro ato, com muitas piadas, trocadilhos, gozações e provocações mútuas. Ao final, quase sempre, algum pedido era tirado. Eu me divertia vendo aquele teatro. E aprendia com as conversas de homens mais experientes. Mesmo quando meu pai dizia não querer, em especial seu Bino, falava:
_ Christovam, vou mandar um pouco de mercadoria. Pra não faltar. Duplicata em carteira. Depois você dá um cheque pré-datado.
Meu pai preferia comprar assim. As duplicatas em banco eram mais difíceis de negociar um prazo adicional para pagamento.
Outra coisa que me lembro: havia uma divisão de trabalho entre meus pais. Alguns viajantes eram atendidos por ele. Outros por minha mãe. O trato com minha mãe era sempre mais racional. Envolvia um levantamento do estoque. Mesmo que no momento de atendimento do viajante. Uma estimativa de venda para o período de compra. Em geral mensal. Já com meu pai, era mais emocional. Se estava bem humorado, era fácil. Pedia para o viajante repetir o último pedido. Em caso de mal humor, a situação complicava. Negociação difícil. Às vezes, encasquetava. Não comprava.
Meu pai, quando estava nervoso, assobiava. Era um assobio nada melodioso. Sem ritmo. Na verdade, muito chato. Passava o dia emitindo aquele som irritante. No atendimento dos viajantes, embora houvesse uma divisão entre os dois, às vezes, quando um não estava, o outro atendia. Muitas vezes, os viajantes que minha mãe recebia, quando ela não estava, me perguntavam sobre o humor de meu pai. Se a resposta fosse:
_ Está assobiando muito hoje.
Eles, em geral, diziam:
_ Volto outra hora. Outro dia.
_ Acho melhor. Eu concordava.
Os fregueses mais assíduos também sabiam do humor de meu pai pelo assobio. Dona Letícia, mãe do Zezinho, era uma. Zezinho foi o personagem que me fez escrever a primeira história do Gimenez aqui nesse blog (Zezinho.... vai lá no Gimenez), quando ele me encontrou e a minha mãe, em outro supermercado, muitos anos depois que já venderamos o Gimenez,. Então, dona Letícia era uma que sempre percebia o assobio. E comentava:
_ O Gimenez, tá nervoso hoje, né?
Depois que alguma das moças que trabalhavam nos caixas confirmava, ela dizia:
_ Deixa quieto. Deve tá apertado.
Era verdade. Em geral, meu pai ficava nervoso quando o caixa ficava negativo. Muitos compromissos a pagar e pouco dinheiro no banco.
Em um desses dias, teve um incidente. Um pouco constrangedor. Mais um envolvendo um cachorro. Dessa vez, o cachorro de um freguês. Me lembro o nome dele, mas não vou revelar, por causa de um detalhe. Você logo vai entender. Era um homem muito baixo. Vinha ao mercado muitas vezes por semana. Morava perto. Sempre acompanhado de um pastor alemão imenso. Certa vez, o cachorro fez um monte de cocô bem em frente a uma das portas do mercado. Muita merda mesmo!
Por azar, nesse dia, meu pai já acordara assobiando. E, ele estava ali e viu o monte que o cachorro fez. Não deu outra. Falou para o freguês:
_ Fulano, você vai limpar essa sujeira.
E pediu para alguém:
_ Vai lá dentro e traz uma vassoura e uma pá.
O freguês, meio a contragosto, não teve escolha. Fez a limpeza. Tempos depois, a vida seguiu seu rumo. Uns dias com assobio, outros sem. Certo dia, uma descoberta desconfortável. O dono do pastor alemão estava fazendo pequenos furtos no mercado. Uma das funcionárias percebeu. Passou a observar. Ele escondia um ou outro produto nas roupas. O que fazer?
A filha dele, assim como o pai, também era freguesa do mercado. Casada, ela e o marido costumavam fazer compras conosco. Pra encurtar a história, conto logo a solução. Para evitar mais um constrangimento para o dono do pastor alemão, sempre que ele ia fazer compras, alguém o observava discretamente. Se algum produto era surrupiado, a gente anotava e depois a filha pagava.
Coisas da vida vivida em uma pequena empresa!

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