segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Dona Judith(e) e Chumbinho

A escrita de memórias, pelo menos para mim, depende de um gatilho mental. Em uma conversa, em uma leitura, ou em um momento qualquer, surge a lembrança. Cabe a mim, convertê-la em escrita.
Foi o que aconteceu hoje. Em um banco de sangue, fazendo a quarta e última sessão de sangria terapêutica. Na conversa com Amanda, a enfermeira, foi inevitável falar da vacinação contra a Covid. Da vacinação, surgiu meu comentário sobre o tamanho da agulha que vemos nas imagens televisivas. Parece maior do que o usual. Amanda, me perguntou se estava tudo bem comigo durante a sangria. Brinquei:
_ Hoje a picada foi dolorida. Você está com a mão pesada.
Rindo, ela respondeu:
_ Tô malvada hoje!
Eu continuei:
_ Achei até que tinha pegado uma agulha de calibre maior.
_ Não. Às vezes pegamos uma veia mais sensível.
Nesse momento, me lembrei de Dona Judite. Talvez fosse Judith. Mãe de Marilda, que se casou com Fernando.  E de Messias, que se casou com Regina. Todos na vizinhança do  Gimenez. Fregueses também. Além de freguesa leal e com crédito na casa, Dona Judith(e) era quem aplicava as injeções na vizinhança.
Contei para Amanda a lembrança. Vendo dona Judith(e) chegando. O medo da injeção. A fervura da seringa e agulhas no fogão. O deitar-se em um colo. De mãe ou de Dona Judite(th)? A memória falha. O esfregar do algodão na bunda. A picada. Uma eventual lágrima. Um pouco mais de algodão.
_ Pronto Fernando! Viu como não doeu.
De Dona Judith(e) a lembrança vai para Chumbinho. Negro e magro. Não muito alto. Mas, também não baixo. Estatura média. Um sorriso constante e contagiante no rosto. Parecia de bem com a vida sempre.
Periodicamente passava pela vizinhança. Aplicava as vacinas na cachorrada. Nos de casa. Em outros. O que lembro bem, era a correria dos cachorros. Chumbinho aparecia na esquina. Ainda longe. E os cachorros sumiam. Se escondiam em casa.
Me lembro muito do Pipoca. Um vira-lata manchado de marrom e branco. Pequeno. Tinha um defeito no focinho. Parecia sorrir. Sempre com alguns dentes à mostra. Pipoca adorava balas Rin-Tin-Tin. Sempre atravessava a rua, indo de casa para o mercado. Ficava saltando ao lado de um dos caixas. Enquanto não ganhava sua bala, não dava sossego as moças do caixa. Era no tempo de Conceição e Graça. Muito provável. 
Depois ficava um tempo em frente ao mercado. Na hora de voltar tinha que atravessar a rua novamente. Sempre olhava para os dois lados da rua. Como se fosse treinado. Um dia, esqueceu de olhar para um dos lados. Uma pena!
Quando via Chumbinho, o sorriso se transformava em dentes arreganhados. Acompanhado de um rosnar agressivo. Tinha que segurá-lo firme para que Chumbinho fizesse seu trabalho. Isto, depois de correr atrás dele que fugia assim que Chumbinho apontava na esquina.
Essas são memórias de meu tempo de Casa Gimenez. Criança ainda. No tempo em que casa e mercado se misturavam. No tempo em que fregueses, freguesas e comerciantes se tratavam pelos nomes. Amizades podiam até surgir.
Apesar das picadas, Dona Judite(th) e Chumbinho eram pessoas doces. Sua lembrança me aliviou a dor da picada da sangria de hoje. Tinha que escrever esta história. A vontade das palavras é lei para mim. Faço o que mandam.