segunda-feira, 11 de junho de 2012

PEQUENA EMPRESA FAMILIAR: UM ESPAÇO CONFLITUOSO?

Em memória de meu pai
Durante alguns anos tive a oportunidade de trabalhar com meus pais em uma pequena empresa tipicamente familiar. Qualquer um que tenha passado por esse tipo de experiência sabe das dificuldades que gerações diferentes encontram quando precisam trabalhar juntos, em particular quando nesse tipo de trabalho há uma relação que extrapola a profissional, envolvendo pais e filhos ou mães e filhas. O afeto paterno ou materno pode ser um fator gerador de conflitos, pois os filhos muitas vezes desejam ser tratados como um profissional competente que pode trazer uma contribuição relevante para a empresa da família. De vez em quando, diferentes compreensões sobre uma oportunidade empresarial ou um problema a ser enfrentado levam a conflitos que extrapolam a vida profissional e afetam a relação familiar. Nesses momentos, a autoridade materna ou paterna tende a prevalecer, independentemente de qualquer solução técnica.
Mas, conflitos pessoais não são exclusivos de empresas familiares! Em qualquer organização eles ocorrem e, também, as soluções encontradas nem sempre são exclusivamente técnicas. A neutralidade emotiva não existe nas organizações! Em qualquer situação, aspectos afetivos estão presentes nas soluções encontradas. O que pode ser diferente é a maior ou menor ênfase dada as aspectos relacionais nos processos decisórios nas empresas que, provavelmente, vão ser característicos de diferentes culturas organizacionais.
Charles Handy apresentou em um de seus livros uma forma de encarar as diferentes maneiras com que a cultura das organizações pode se manifestar. Em seu livro Os deuses da administração, Handy aborda como que as empresas podem evoluir ao longo do tempo, passando por quatro estágios culturais que marcam a maneira como as pessoas compartilham diferentes pressupostos sobre processos decisórios, aprendizagem, poder de influência, modos predominantes de mudança organizacional, motivação das pessoas e formas de recompensa.
Neste livro, Handy usa a figura de quatro deuses da mitologia grega para diferenciar entre culturas de grupo ou clube, da função, da tarefa e existencial. Cada uma dessas culturas, segundo Handy, pode representar um estágio na evolução de uma empresa em particular, embora algumas empresas possam passar toda sua existência com uma cultura predominante.
            A cultura de grupo ou de clube, Handy associa a Zeus, poderosa entidade do Olimpo Grego que, segundo a tradição, tinha comportamentos muito enérgicos e emotivos. Quando Zeus estava irado com os humanos causava grandes tempestades, repletas de trovoadas aterrorizantes e infindáveis raios. Por outro lado, quando Zeus estava muito satisfeito, fazia chover ouro em pó sobre os humanos. Segundo Handy, esse tipo de cultura é frequentemente encontrado em empresas jovens e pequenas, com a presença de um líder muito poderoso. Essa cultura enfatiza a informalidade e empatia entre pessoas, acentua rapidez nas decisões, e é eficiente onde rapidez é mais importante que detalhe. A presença de Zeus nesse tipo de organização se nota pela forma com que o principal tomador de decisões na empresa, se for familiar seria o pai ou a mãe, trata a todos de forma paternalista, tentando reproduzir na empresa um clima de família. Nessas empresas, em geral, a aprendizagem ocorre por tentativa e erro ou baseada em modelos; a influência é exercida através do controle de recursos e carisma pessoal; a base da mudança é a substituição de pessoas; e a motivação é orientada pela busca dopoder sobre pessoas e acontecimentos.
            Handy associa o deus Apolo à cultura da função que enfatiza a definição da função a ser realizada baseada em princípios racionais e lógicos, com a busca constante de estabilidade e previsibilidade e as mudanças ocorrem por meio de alterações estruturais ou dos sistemas. O que motiva as pessoas nesse tipo de organização é a autoridade formal e o status. A cultura da tarefa é representada pela deusa Atena, que caracteriza empresas onde se visualiza a administração como solução de problemas de forma contínua e bem sucedida (projetos). Por fim, Handy menciona a possibilidade de serem encontradas organizações onde a cultura predominante é a existencial representada pelo deus Dionísio. Esse tipo de organização é excelente onde o talento ou habilidade individual é o recurso crucial da organização. Segundo Handy, a noção de chefia não faz sentido nesse tipo de organização, sendo mais consistentes a ideia da presença de alguém que coordena as diferenças tarefas individuais. É o que Handy brilhantemente chama de administração consentida, com a coexistência de diversos estilos de pensamento e respeito integral ao indivíduo, sem paternalismo. Nesse tipo ideal de organização as pessoas são motivadas pela liberdade pessoal e autonomia.
            A leitura do livro de Handy é indispensável para quem deseja conhecer um pouco da diversidade que existe no fenômeno organizacional. Para cada uma das culturas, Handy cita diversos exemplos de organizações onde predomina a cultura específica. Mas, aqui minha ideia é refletir sobre a cultura típica da pequena empresa familiar que é, sem dúvida, a de grupo onde se encontra uma liderança forte feminina ou masculina representadas por Zeus no livro de Handy.
            Ora, levando isso em conta como é possível aos filhos conviverem de forma harmoniosa e darem uma contribuição efetiva à empresa da família. Lembro-me de alguns episódios em que tive a oportunidade de discordar de Zeus na empresa de minha família. Em geral, os conflitos que tive com meu pai ocorreram por causa de diferentes perspectivas na solução de problemas. Meu pai trazia na sua bagagem de vida, uma experiência bem sucedida de mais de 20 anos de condução da empresa. Eu trazia os conhecimentos novos que estava aprendendo no curso de graduação em administração. E muito ansioso para transformar alguns dos processos da empresa. Naquela época eu não sabia, mas o que tentava fazer era transformar a empresa em direção a uma cultura da função. Eu estava aprendendo o valor das regras explícitas, da análise racional de causas e efeitos, da busca de soluções alternativas, baseadas em avaliação de custos e benefícios. Meu pai sabia que, em geral, o que decidia dava certo. Ele sempre fez daquela maneira! E sempre ganhava o argumento, pois ao fim dizia:
            _ Você tem muita gramática e pouca prática!
E, típico de Zeus, fazia as coisas a seu modo. Embora, isso causasse uma certa tensão, no geral as decisões em nossa empresa eram consistentes com os objetivos de meus pais. Nunca percebi neles um desejo de que a empresa viesse a se tornar grande no futuro. Parecia que meu pai e minha mãe se sentiam satisfeitos com o que tinham realizado: ter uma pequena empresa bem sucedida que fosse uma base segura de manter a família com uma qualidade de vida muito boa. Talvez eu, inconscientemente, desejasse que a empresa se expandisse, impregnado pelos aprendizados que tinha na graduação e que, em geral, falavam de estratégias de crescimento constante. Eu estava sendo formado para dirigir uma grande empresa. Os conteúdos em geral se voltavam para essa realidade, muito diferente daquela que eu vivenciava no dia-a-dia.
Aliás, era nesse dia-a-dia que o meu aprendizado teórico era calibrado pelas contingências da administração em uma pequena empresa. Foi assim que pude aprender que nem sempre as regras racionais poderiam ser aplicadas. Ou, ao menos, havia exceções que eram importantes e que faziam sentido. Por exemplo, durante certo período meu pai estabeleceu uma regra de que cigarros não poderiam ser vendidos no fiado. A empresa fornecedora só nos vendia à vista e, assim, não fazia sentido vendermos os cigarros no fiado, para receber no final do mês. Mas, meu pai conhecia bem seus fregueses e, segundo um deles, nessa época meu pai chegava e colocava no bolso do freguês um dinheiro para a compra do cigarro. Depois ele acrescentaria esse valor na conta mensal. Ele não podia deixar que um freguês em dificuldade deixasse de atender sua necessidade, mas preservava a regra e as funcionárias dos caixas não ficavam sabendo disso. Belíssimo, não? De novo um comportamento de Zeus, paternalista.
Outro exemplo era o relacionamento com os empregados. Muito zangado algumas vezes, muito afetivo outras vezes. Era hilariante ver como meu pai se preocupava em particular com as moças que trabalhavam conosco. Em geral, esse era o primeiro emprego delas, aprendiam na prática e meu pai as tratava como se fossem filhas. Chegava ao cúmulo de querer ser informado quando estas começassem algum namoro, queria saber quem era o rapaz, se era de boa família, e assim por diante... Mas, se faziam algo errado, fosse na empresa ou fora dela, lá vinha a tempestade! Com os clientes era a mesma coisa. Em alguns momentos eram tratados como reis, em outros eram o alvo de discussões e, até mesmo, desaforos! Afinal seu Gimenez era um Zeus espanhol! Chegou a ser retratado na imprensa local como o tubarão da rua Paranaguá, na época em que houve racionamento de alguns produtos e ele dava jeito de atender alguns clientes confiáveis, mas outros não.
Foi uma escola de administração para mim. Como filho, algumas vezes foi difícil. Anos depois, quando já me havia decidido pela vida acadêmica, assisti a um filme que me fez enxergar melhor qual foi o papel de meu pai na minha carreira. No filme Estrada para Perdição (Road to perdition), de 2002, dirigido por Sam mendes, Tom Hanks vive o papel de um contador cujo filho presencia um assassinato e, a partir desse momento, corre sérios riscos de ser assassinado também. O personagem de Tom Hanks parte em uma jornada para uma pequena cidade chamada Perdition, tentando proteger a vida do filho. Nessa jornada ele comete vários atos violentos. O filme começa com a narração feita pelo filho que diz:
_ Alguns dizem que meu pai foi um homem mau, outros dizem que ele foi um homem bom, eu só posso dizer que ele foi meu pai...
Pois é, alguns me diziam que meu pai era um ótimo empresário, outros me diziam que ele não era tão bom assim. Quanto a mim, só posso dizer que ele foi meu pai. Aprendi muito com ele!


Nenhum comentário:

Postar um comentário