Em memória de meu pai
Durante alguns anos tive a oportunidade de
trabalhar com meus pais em uma pequena empresa tipicamente familiar. Qualquer
um que tenha passado por esse tipo de experiência sabe das dificuldades que
gerações diferentes encontram quando precisam trabalhar juntos, em particular
quando nesse tipo de trabalho há uma relação que extrapola a profissional,
envolvendo pais e filhos ou mães e filhas. O afeto paterno ou materno pode ser
um fator gerador de conflitos, pois os filhos muitas vezes desejam ser tratados
como um profissional competente que pode trazer uma contribuição relevante para
a empresa da família. De vez em quando, diferentes compreensões sobre uma
oportunidade empresarial ou um problema a ser enfrentado levam a conflitos que
extrapolam a vida profissional e afetam a relação familiar. Nesses momentos, a
autoridade materna ou paterna tende a prevalecer, independentemente de qualquer
solução técnica.
Mas, conflitos pessoais não são exclusivos de
empresas familiares! Em qualquer organização eles ocorrem e, também, as
soluções encontradas nem sempre são exclusivamente técnicas. A neutralidade
emotiva não existe nas organizações! Em qualquer situação, aspectos afetivos
estão presentes nas soluções encontradas. O que pode ser diferente é a maior ou
menor ênfase dada as aspectos relacionais nos processos decisórios nas empresas
que, provavelmente, vão ser característicos de diferentes culturas
organizacionais.
Charles Handy apresentou em um de seus livros
uma forma de encarar as diferentes maneiras com que a cultura das organizações
pode se manifestar. Em seu livro Os
deuses da administração, Handy aborda como que as empresas podem evoluir ao
longo do tempo, passando por quatro estágios culturais que marcam a maneira
como as pessoas compartilham diferentes pressupostos sobre processos decisórios,
aprendizagem, poder de influência, modos predominantes de mudança
organizacional, motivação das pessoas e formas de recompensa.
Neste livro, Handy usa a figura de quatro
deuses da mitologia grega para diferenciar entre culturas de grupo ou clube, da
função, da tarefa e existencial. Cada uma dessas culturas, segundo Handy, pode
representar um estágio na evolução de uma empresa em particular, embora algumas
empresas possam passar toda sua existência com uma cultura predominante.
A cultura de grupo ou
de clube, Handy associa a Zeus, poderosa entidade do Olimpo Grego que, segundo
a tradição, tinha comportamentos muito enérgicos e emotivos. Quando Zeus estava
irado com os humanos causava grandes tempestades, repletas de trovoadas
aterrorizantes e infindáveis raios. Por outro lado, quando Zeus estava muito
satisfeito, fazia chover ouro em pó sobre os humanos. Segundo Handy, esse tipo
de cultura é frequentemente encontrado em empresas jovens e pequenas, com a
presença de um líder muito poderoso. Essa cultura enfatiza a informalidade e
empatia entre pessoas, acentua rapidez nas decisões, e é eficiente onde rapidez
é mais importante que detalhe. A presença de Zeus nesse tipo de organização se
nota pela forma com que o principal tomador de decisões na empresa, se for
familiar seria o pai ou a mãe, trata a todos de forma paternalista, tentando
reproduzir na empresa um clima de família. Nessas empresas, em geral, a aprendizagem
ocorre por tentativa e erro ou baseada em modelos; a influência é exercida
através do controle de recursos e carisma pessoal; a base da mudança é a
substituição de pessoas; e a motivação é orientada pela busca dopoder sobre
pessoas e acontecimentos.
Handy associa o deus
Apolo à cultura da função que enfatiza a definição da função a ser realizada
baseada em princípios racionais e lógicos, com a busca constante de estabilidade
e previsibilidade e as mudanças ocorrem por meio de alterações estruturais ou
dos sistemas. O que motiva as pessoas nesse tipo de organização é a autoridade formal
e o status. A cultura da tarefa é representada pela deusa Atena, que
caracteriza empresas onde se visualiza a administração como solução de
problemas de forma contínua e bem sucedida (projetos). Por fim, Handy menciona
a possibilidade de serem encontradas organizações onde a cultura predominante é a
existencial representada pelo deus Dionísio. Esse tipo de organização é excelente onde o talento ou habilidade
individual é o recurso crucial da organização. Segundo Handy, a noção de chefia
não faz sentido nesse tipo de organização, sendo mais consistentes a ideia da
presença de alguém que coordena as diferenças tarefas individuais. É o que
Handy brilhantemente chama de administração consentida, com a coexistência de diversos
estilos de pensamento e respeito integral ao indivíduo, sem paternalismo. Nesse
tipo ideal de organização as pessoas são motivadas pela liberdade pessoal e
autonomia.
A leitura do livro de
Handy é indispensável para quem deseja conhecer um pouco da diversidade que
existe no fenômeno organizacional. Para cada uma das culturas, Handy cita
diversos exemplos de organizações onde predomina a cultura específica. Mas,
aqui minha ideia é refletir sobre a cultura típica da pequena empresa familiar
que é, sem dúvida, a de grupo onde se encontra uma liderança forte feminina ou
masculina representadas por Zeus no livro de Handy.
Ora, levando isso em
conta como é possível aos filhos conviverem de forma harmoniosa e darem uma
contribuição efetiva à empresa da família. Lembro-me de alguns episódios em que
tive a oportunidade de discordar de Zeus na empresa de minha família. Em geral,
os conflitos que tive com meu pai ocorreram por causa de diferentes
perspectivas na solução de problemas. Meu pai trazia na sua bagagem de vida,
uma experiência bem sucedida de mais de 20 anos de condução da empresa. Eu trazia
os conhecimentos novos que estava aprendendo no curso de graduação em
administração. E muito ansioso para transformar alguns dos processos da empresa. Naquela
época eu não sabia, mas o que tentava fazer era transformar a empresa em
direção a uma cultura da função. Eu estava aprendendo o valor das regras
explícitas, da análise racional de causas e efeitos, da busca de soluções
alternativas, baseadas em avaliação de custos e benefícios. Meu pai sabia que,
em geral, o que decidia dava certo. Ele sempre fez daquela maneira! E sempre
ganhava o argumento, pois ao fim dizia:
_ Você tem muita
gramática e pouca prática!
E, típico de Zeus, fazia as coisas a seu
modo. Embora, isso causasse uma certa tensão, no geral as decisões em nossa
empresa eram consistentes com os objetivos de meus pais. Nunca percebi neles um
desejo de que a empresa viesse a se tornar grande no futuro. Parecia que meu
pai e minha mãe se sentiam satisfeitos com o que tinham realizado: ter uma
pequena empresa bem sucedida que fosse uma base segura de manter a família com
uma qualidade de vida muito boa. Talvez eu, inconscientemente, desejasse que a
empresa se expandisse, impregnado pelos aprendizados que tinha na graduação e
que, em geral, falavam de estratégias de crescimento constante. Eu estava sendo
formado para dirigir uma grande empresa. Os conteúdos em geral se voltavam para
essa realidade, muito diferente daquela que eu vivenciava no dia-a-dia.
Aliás, era nesse dia-a-dia que o meu
aprendizado teórico era calibrado pelas contingências da administração em uma
pequena empresa. Foi assim que pude aprender que nem sempre as regras racionais
poderiam ser aplicadas. Ou, ao menos, havia exceções que eram importantes e que
faziam sentido. Por exemplo, durante certo período meu pai estabeleceu uma
regra de que cigarros não poderiam ser vendidos no fiado. A empresa fornecedora
só nos vendia à vista e, assim, não fazia sentido vendermos os cigarros no
fiado, para receber no final do mês. Mas, meu pai conhecia bem seus fregueses
e, segundo um deles, nessa época meu pai chegava e colocava no bolso do freguês
um dinheiro para a compra do cigarro. Depois ele acrescentaria esse valor na
conta mensal. Ele não podia deixar que um freguês em dificuldade deixasse de
atender sua necessidade, mas preservava a regra e as funcionárias dos caixas
não ficavam sabendo disso. Belíssimo, não? De novo um comportamento de Zeus,
paternalista.
Outro exemplo era o relacionamento com os
empregados. Muito zangado algumas vezes, muito afetivo outras vezes. Era
hilariante ver como meu pai se preocupava em particular com as moças que
trabalhavam conosco. Em geral, esse era o primeiro emprego delas, aprendiam na
prática e meu pai as tratava como se fossem filhas. Chegava ao cúmulo de querer
ser informado quando estas começassem algum namoro, queria saber quem era o
rapaz, se era de boa família, e assim por diante... Mas, se faziam algo errado,
fosse na empresa ou fora dela, lá vinha a tempestade! Com os clientes era a
mesma coisa. Em alguns momentos eram tratados como reis, em outros eram o alvo
de discussões e, até mesmo, desaforos! Afinal seu Gimenez era um Zeus espanhol!
Chegou a ser retratado na imprensa local como o tubarão da rua Paranaguá, na
época em que houve racionamento de alguns produtos e ele dava jeito de atender
alguns clientes confiáveis, mas outros não.
Foi uma escola de administração para mim.
Como filho, algumas vezes foi difícil. Anos depois, quando já me havia decidido
pela vida acadêmica, assisti a um filme que me fez enxergar melhor qual foi o
papel de meu pai na minha carreira. No filme Estrada para Perdição (Road to perdition), de 2002, dirigido por
Sam mendes, Tom Hanks vive o papel de um contador cujo filho presencia um
assassinato e, a partir desse momento, corre sérios riscos de ser assassinado
também. O personagem de Tom Hanks parte em uma jornada para uma pequena cidade
chamada Perdition, tentando proteger a vida do filho. Nessa jornada ele comete
vários atos violentos. O filme começa com a narração feita pelo filho que diz:
_ Alguns dizem que meu pai foi um homem mau,
outros dizem que ele foi um homem bom, eu só posso dizer que ele foi meu pai...
Pois é, alguns me diziam que meu pai era um
ótimo empresário, outros me diziam que ele não era tão bom assim. Quanto a mim,
só posso dizer que ele foi meu pai. Aprendi muito com ele!
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