quarta-feira, 20 de maio de 2020

Muito antes desse tal de delivery


Nesse momento de pandemia do Covid 19, a ideia do delivery se tornou obrigatória para a maioria dos empreendimentos comerciais. A imposição ou recomendação de isolamento social em muitas cidades fez com que essa forma de venda se expandisse muito. Com a disponibilidade dos aplicativos e dos sites de vendas online, se multiplicaram as possibilidades de atendimento às necessidades de consumo da população. Mas, todo mundo sabe que isto já estava acontecendo há, pelo menos, uns cinco anos ou mais. O delivery, com esse nome, pode ser uma novidade. Mas, com outro nome, ele já acontecia há décadas.
Nesses dias que tenho permitido à minha mente viajar por lembranças do tempo em que trabalhei com meus irmãos e meus pais no Supermercado Gimenez, me veio à mente mais uma história envolvendo o José, um dos motoristas que trabalharam no Supermercado Gimenez. A principal função dos motoristas era fazer entregas a domicílio com a Kombi do mercado, mas ajudavam em outras tarefas quando não havia entregas a serem feitas.
Essas entregas surgiam de duas maneiras: fregueses que faziam compras presencialmente e solicitavam que fossem levadas para suas casas; ou compras feitas pelo telefone, que eram preparadas por alguma de nossas funcionárias e depois encaminhadas às casas dos clientes.
Esse serviço de entrega a domicílio, o que hoje chamam delivery, era comum no comércio daquela época. Certo dia, José chegou para mim, ou para minha tia Amélia, que trabalhou conosco por algum tempo, e disse:
_ Não vou mais fazer entrega na casa da fulana (não vou usar os nomes verdadeiros, para não criar nenhum constrangimento, apesar da fulana já estar morta há muito tempo).
Essa decisão do José foi uma surpresa para nós. O que será que teria acontecido? Foi a pergunta feita a ele, que respondeu:
_ Então, lá naquela casa as pessoas andam só de calcinha e cueca. Eu não posso ir fazer entregas lá.
José era devoto de uma denominação religiosa muito rigorosa. E a casa da fulana era conhecida por ser frequentada por muitos jovens, homens e mulheres, que eram adeptos de uma vida mais livre, sem muito apego às convenções sociais. A fulana era filha de um empresário bem sucedido da cidade. E as compras daquela casa sempre eram muito volumosas. Além disso, eram compras feitas no velho sistema de “assinar as notas” que seriam pagas no começo do outro mês pelo pai. “Assinar as notas” era uma evolução das antigas cadernetas de fiado usadas pelo comércio varejista. Uma prática que meu pai e minha mãe adotaram por muito tempo na época da Casa Gimenez. Dia sim, dia não, a fulana ligava para o Supermercado Gimenez e fazia um pedido de entrega.
Pois então, não dava pra gente dizer para a fulana ou o pai dela que não faríamos mais entregas naquela casa. No começo do mês a conta paga pelo pai da fulana era significativa. Não podíamos abrir mão daquele faturamento. Felizmente, naquela época os três irmãos – Christovam, Arlindo e eu – já éramos motoristas e passamos a levar as compras na casa da fulana. Pelo menos no meu caso, não me lembro de ver os jovens circulando pela casa de cueca ou calcinha. Em geral, a empregada da casa era quem recebia as entregas. E, sempre, devidamente vestida, até uniformizada! Assim, preservamos os princípios religiosos do José, que continuou fazendo as demais entregas, exceto quando, como já contei em outro texto, meu irmão mais velho fazia questão de fazer alguma entrega mais especial.
Tem outra coisa relacionada às entregas a domicílio que me fez refletir sobre os tempos do Supermercado Gimenez. Hoje a prática do delivery é tão comum, que não penso ser possível algum negócio deixar de utilizá-la. Mas, naquela época os pedidos por telefone e posterior entrega a domicílio foram foco de muito debate entre os supermercadistas de Londrina.
Nosso supermercado era vinculado à associação de supermercados. Pelo menos uma vez por mês, participávamos de reuniões com os demais para discutir assuntos da classe. Volta e meia a questão das vendas por telefone, que continuávamos fazendo, era lembrada e criticada. A lógica dessa crítica residia no fato de que a criação das então chamadas “lojas de autosserviço” era uma inovação que deveria estimular o cliente, ao circular livremente pela loja, fazer compras mais volumosas. Nas antigas mercearias, o balcão que separava clientes e vendedores, impedia o acesso mais amplo dos clientes às mercadorias. Os supermercados tentavam estimular as chamadas compras por impulso. Algo que o cliente ao ver se lembraria da necessidade ou compraria por ter despertado o desejo por aquele produto.
Foram inúmeras as ocasiões em que tivemos, eu ou meu pai, de discordar dos demais supermercadistas e manter o atendimento por telefone. Era um serviço que marcava nosso supermercado de forma positiva. Um atendimento personalizado às freguesas e fregueses. Estes, muitas vezes, eram conhecidos e amigos de décadas do seu Gimenez e da dona Kilda. Não dava pra deixa-los na mão!

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