terça-feira, 23 de junho de 2020

Seu Gimenez, o senhor enxerga bem com estes óculos?

Durante parte do dia, eu costumava trabalhar no escritório do supermercado. Em geral fazia alguns registros de preços de custo de mercadorias. O fazia em uma escrivaninha de madeira que ficava em um canto, ao lado de um cofre de aço, verde, em que guardávamos documentos.
Era onde, também, eu separava e somava as notas de fiado dos fregueses que compravam por mês e as guardava em uma das gavetas, até o dia da cobrança.
Minnha mãe, que era contadora, havia criado um sistema de fichas para anotações de quantidades e preços de custo das mercadorias que eram comercializadas. Um controle de estoque muito rudimentar, que eu passei a alimentar. Permitia que resgatássemos o preço de alguma mercadoria que eventualmente se perdesse. Nas fichas registrávamos, também, dados sobre os fornecedores. Eram informações que tinham alguma utilidade eventualmente.
Era um espaço pequeno o do escritório. Ficava em uma espécie de pequena sobreloja, a que se chegava por uma escada de cimento um pouco ingreme. Devia ter, no máximo nove metros quadrados. A escrivaninha que eu usava ficava ao fundo desse espaço, em frente de quem saía da escada. Sentado, eu ficava de costas para quem subia.
Bem ao lado da escada, ficava a outra escrivaninha, de aço, usada por meu pai e minha mãe. Na escrivaninha de aço, havia um cofre em que se guardava o faturamento diário.
Na verdade, o escritório era como se fosse uma caixa, sem vidros ou janelas, com paredes baixas, um metro e meio talvez, suportada por quatro pilares. Dava, a quem o ocupava, uma visão aérea de todo o salão em L do supermercado. Só não se conseguia ver, o que estava abaixo do escritório.
Meus pais, neste pequeno escritório, atendiam os viajantes. Os muitos representantes comerciais que, às vezes mensalmente, às vezes quinzenalmente, nos visitavam para "tirar" pedidos. Os viajantes sentavam em uma cadeira ao lado da escrivaninha de aço, em frente ao cofre verde. Era um leiaute apertado. A posição de meu pai ou minha mãe era de frente para o espaço maior do mercado, em direção às portas de entrada e checkouts. A cadeira dos viajantes fazia com que eles ficassem de costas para o salão, de frente para minha cadeira, e em diagonal com a posição de meu pai.
Era neste espaço pequeno, que a maioria dos pedidos eram feitos. E meu pai, uma vez me surpreendeu.
Estava eu lá no escritório e chegou um antigo viajante com o novo supervisor de vendas da empresa fornecedora que ele representava. Depois das apresentações, de um pouco de conversa jogada fora, meu pai disse que não faria nenhum pedido naquele dia. O supervisor insistiu, mas meu pai não cedeu.
Depois que eles foram embora, comentei com meu pai que estávamos com pouco estoque de alguns produtos daquela empresa. E perguntei por que ele não quis comprar.
_ Não gosto de comprar quando vem o supervisor junto. Foi a resposta de meu pai.
Eu perguntei por que? E ele me ensinou:
_ Às vezes, há supervisores arrogantes que acham que a venda acontece por causa deles. Mas quem sofre comigo sempre é o viajante. Não vou dar essa moleza pra supervisor nenhum. Eu compro é do viajante!
E ainda completou:
_ Se precisarmos, a gente faz uma compra de emergência em algum atacadista da cidade. E na próxima visita, faço um pedido melhor com o viajante.
Assim era Seu Gimenez!
Mas eu comecei este texto porque queria contar outra história. Um dia eu estava trabalhando no escritório e meu pai estava fazendo algo na sua escrivaninha. Chegou um viajante. Subiu a escada. Nos cumprimentou e se sentou.
Depois do bate-papo usual, tirado o pedido, o viajante que era conhecido de muito tempo de meus pais, perguntou:
_ Seu Gimenez, o senhor enxerga bem com estes óculos?
Meu pai respondeu:
_ Rapaz, engraçado você perguntar. Acho que preciso trocar. Às vezes, tenho dificuldades para ler com eles.
Nisso, o viajante pegou os óculos de meu pai, os embaçou com o próprio hálito e limpou com seu lenço. Rindo muito, devolveu os óculos a meu pai e disse:
_ Se o senhor os limpasse de vez em quando, poderia ler melhor.
Nós três caímos na gargalhada. Essa história engraçada e verdadeira, não pense que inventei, me trouxe à memória alguns desses homens que negociaram com meu pai ou minha mãe, às vezes por décadas. Alguns tornaram-se fregueses do Supermercado Gimenez também. Em alguns momentos, pude atendê-los quando nem minha mãe nem meu pai estavam presentes.
Gosto dessa memória, pois me revela como naquela pequena empresa, pela qual passou tanta gente, a vida se fazia presente em diversas formas. Não eram só momentos de trocas econômicas entre compradores e vendedores. Eram também momentos de amizade, camaradagem e de convivio humano. Tão ou mais importantes que comprar e vender.

2 comentários:

  1. Emocionante esse relato Fernando. Olhar pela perspectiva da vida que se vive nas empresas faz toda a diferença! Parabéns!

    ResponderExcluir